segunda-feira, 1 de abril de 2013

Céu sobre chuva ou BOTEQUIM (RJ)

Idealizado por Márcia do Valle, clássico do
teatro brasileiro está de volta
Foto: divulgação

Quarenta anos depois, “Botequim” retorna à cena teatral carioca

“Céu sobre chuva ou BOTEQUIM” é uma das pérolas da dramaturgia brasileira contemporânea e sua montagem histórica, há exatos quarenta anos, é uma das passagens mais marcantes do teatro nacional. Escrito por Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e dirigido por Antônio Pedro Borges, a peça estreou em abril de 1973 no Teatro Princesa Isabel, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, protagonizado pela cantora Marlene. Idealizado por Márcia do Valle e produzido pela Bloco Pi (Damiana Guimarães e Liliana Mont Serrat), o mesmo autor sob a mesma direção retornam à cena para olhar (e fazer olhar) para esse “novo” Brasil através do mesmo “Botequim”. Em cartaz no Teatro dos Correios, vale a pena conferir a montagem não apenas pelo apreço histórico que se deve à obra, mas para ouvir o que ela continua dizendo ou, talvez, diga agora o que nunca havia dito antes. Com boa interpretação e excelente canto de Valle, o elenco conta ainda com Xando Graça, Vandré Silveira e Andréa Dantas em belíssimos trabalhos de atuação. Assinada por Guarnieri e por Toquinho, as melodias têm agora versão dirigida por Marcelo Alonso Neves. 

O enredo é frouxo, a história é superficial, os personagens vão muito pouco além dos nomes pelos quais se chamam. Enquanto narrativa, “Céu sobre chuva ou BOTEQUIM” é um equívoco fenomenal: durante quase duas horas, a situação inicial permanece, ninguém toma alguma atitude para modifica-la, os acontecimentos são todos desconectados e há vários finais antes do fim. Onde está, então, o valor estético dessa peça? Em 2013, o primeiro elemento considerável são os diálogos de Guarnieri. Quem for lhe assistir não pode alienar-se da preciosidade de cada palavra dita em cena, pois não há sequer alguma sem segundas intenções. Cobertas de metáforas, as palavras fazem ver um amanhecer que é destrutivo e ameaçador, uma alegria que é válvula de escape, uma saúde que está contaminada, uma música que é um choro, um casamento feliz prestes a ser uma viuvez. Em segundo lugar, há que se saber de que o texto é uma versão brasileira em plena ditadura militar para o livro “O Senhor das Moscas” (1954), do romancista inglês William Golding (1911-1993). Se lá, um grupo de meninos sobreviventes de um desastre aéreo organiza uma micro-sociedade em uma ilha deserta, aqui sobreviventes de uma chuva torrencial se abrigam em um boteco. Como em Golding, cada personagem vale por uma parcela social, isto é, representa uma figura da pirâmide: o intelectual, o sindicalista, o alienado, o ditador, o exército, a igreja, o povo, etc. Por fim, mas sem limitações, eis em cartaz no Rio de Janeiro um espetáculo que define com excelência a cultura brasileira em seu cerne mais vital. O brasileiro, afinal, tudo perdoa, tudo esquece e faz até da morte de uma criança um motivo para festejar. Escutam-se com paciência discursos vazios, o carnaval e a cachaça parecem não ter fim e aquele que tudo aceita e contra nada se revolta é o querido da nação. Por tudo isso, “Céu sobre chuva ou BOTEQUIM” ganha todos os pontos que perdeu enquanto narrativa, sendo a minuciosa descrição (não confundir com dissertação e muito menos com análise crítica) de um país, de um povo, de uma gente que não mudou nas últimas quatro décadas. 

Nas interpretações, destacam-se Márcia do Valle (Viúva), Vandré Silveira (Júlio), mas sobretudo Xando Graça (Carrapato) e Andréa Dantas (Olga). Cheios de humanidade e de excelentes usos dos tempos cênicos, os intérpretes aproximam a obra do além ficcional, construindo o realismo naturalismo (vale lembrar de “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo) em sua plenitude. O botequim da Viúva, afinal, é um ecossistema em que os personagens estão além de qualquer julgamento moral, agindo por instinto e sem racionalidade. Por isso, porque pesados demais, são ruins os trabalhos de Dai Bomfim (Dorinha) e de Letícia Miranda (Encapuzada) nesse início de temporada. 

Excelentes são o cenário e o figurino da Espetacular Produções e Artes (Ney Madeira, Pati Faedo e Dani Vidal), assim como o desenho de luz de Aurélio de Simoni. Quanto à trilha sonora, há quem possa dizer que, com exceção dos solos de Márcia do Valle, de Vandré Silveira e de Andréa Dantas, a direção musical de Marcelo Alonso Neves é negativa porque grave demais para um grupo de atores não-cantores. “Céu sobre chuva ou BOTEQUIM” é o primeiro musical em dezenas de produções a que se assiste sem o uso de microfones, ou seja, que resultado teriam os outros musicais em cartaz sem o recurso artificial? Sem também uma boa dicção, partes das letras deixam de ser compreendidas, mas não se pode deixar de dizer que, até nessa intempérie, a peça se apresenta como uma metáfora para o país. 

O novo elenco interpreta bem o mesmo texto que hoje é um clássico da nossa dramaturgia. O diretor Antônio Pedro Borges reestreia a obra com problemas de ritmo, sobretudo nas cenas finais, em que os discursos são por vezes longos em demasia para a uma plateia mais ávida por ação que há quarenta anos. Mas também isso não tira o brilho da atual montagem cheia de bom humor e de deboche sarcástico. 

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Gianfrancesco Guarnieri
Direção: Antonio Pedro Borges

Elenco / Personagens (em ordem alfabética)
Andréa Dantas / Olga
Dai Bomfim / Dorinha
Fabinho D’Lélis (ator/músico) / Miguel
Luciano Moreira (ator/músico) / Índio
Marcelo Dias / Divino
Marcia do Valle / Viúva
Nil Neves / Túlio
Rogério Freitas / Agileu
Vandré Silveira / Julio
Xando Graça / Carrapato

Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Músicas: Gabriel Moura
Cenário e Figurino: Ney Madeira e Espetacular Produções e Artes
Iluminação: Aurélio de Simoni
Preparação Corporal: Édio Nunes
Assistente de Direção: Vilma Melo
Programação Visual: David Lima e Bruno Cachinho
Assistente de Direção de Produção: Laís Werneck
Direção de Produção: Damiana Guimarães e Liliana Mont Serrat
Realização: Márcia do Valle e Bloco Pi Produções
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stela Stephany

2 comentários:

  1. O Rodrigo, como sempre, muito elegante. Achei essa peça um saco e Grey Gardens pior ainda. Sou tua fã!

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  2. Prof!
    Vim parar aqui por acaso, jogando o título da peça no google.
    Acabei de assistir a peça (o prof. Ney Madeira levou uma galera do CETIQT). Concordo com você em muitos aspectos. Saí emocionada do teatro, porque estava prestando mais atenção aos diálogos e suas entrelinhas, aos simbolismos, ao quanto esse texto é atualíssimo. É de arrepiar o tanto de "velhinhas Olgas" que existem por aí, até hoje... Até o último minuto. O tanto de Carrapatos e suas vidas de quase-gente.

    Mas saí meio incomodada com a montagem em si, mas sem saber ao certo apontar o que não gostei, sabe? Ler sua crítica me deu uma clareada nas idéias. Achei que as músicas, apesar de ocuparem boa parte da peça, não contribuíram em muita coisa. Também achei que faltou ritmo, faltaram boas atuaçõess. E achei a iluminação bem óbvia, bem pobrinha.

    Pra quem vai assistir mais preocupado com a arte teatral em si, pode sair decepcionado. Mas como meu interesse era mais social (além dos figurinos) acho que valeu a pena.

    Adorei conhecer teu blog, vou dar uma explorada... Tô precisando de dicas de boas peças em cartaz.

    Beijo,

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