quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Satã, um show para madame (RJ)

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Foto: divulgação

Leandro Melo


Leandro Melo em bela interpretação de Madame Satã


No monólogo “Satã, um show para madame”, dados biográficos do célebre personagem da cultura carioca Madame Satã dividem lugar com um ótimo repertório brasileiro da música popular do século XX. Dirigido por Édio Nunes, há méritos na interpretação de Leandro Melo que vence alguns dos vários desafios da difícil dramaturgia de João Batista Leite. O destaque mais positivo está na parte musical, cuja direção é assinada por Wladimir Pinheiro. A peça cumpriu temporada no Teatro do SESC Tijuca durante o mês de novembro

O resgate da memória de Madame Satã
O problema central de “Satã, um show para madame” é a dramaturgia de João Batista Leite. Apesar das boas intenções, ela não expressa a complexidade do personagem embora a reconheça. Uma a uma, informações básicas da vida do protagonista aparecem em cena isoladamente em uma exposição wikipédica de dados que perdem a chance de aproximar o homenageado do público. Nesse sentido, o texto comete o mesmo pecado tantas vezes denunciado quando se apontam os problemas dos muitos musicais biográficos produzidos nos últimos anos no Rio de Janeiro. O interesse pela vida desse personagem título, como dos vários outros retratados, chama o público, mas não garante a sua atenção: é preciso mais.

João Francisco dos Santos (1900-1976), o Madame Satã, era um criminoso. Sobre suas costas, correram quase trinta processos e, condenado por vários deles, passou muitos anos na cadeia. O mérito da revista O Pasquim em entrevistá-lo, em 1971, retirando-o das sombras, não está em um suposto revisionismo que pudesse modificar essa questão. Dentre os aspectos fundamentais dessa pauta, está a potencialidade de sua figura de suscitar um novo olhar sobre o homem. Nesse argumento, antes de ser algoz, Madame Satã era vítima. Negro, pobre, analfabeto, homossexual, nordestino, ele tinha só sete anos quando seu pai morreu e a mãe, que tinha dezessete bocas alimentar, o trocou por uma égua. Fugindo sozinho para o Rio de Janeiro, ainda menino, ele sentia os reflexos da escravidão, acabada no papel há menos de vinte e cinco anos, tendo que lutar desde criança para conseguir o próprio sustento.

O segundo aspecto relevante do contexto em que a memória de Madame Satã foi resgatada diz respeito aos movimentos sociais. Faz parte das proposições sobre um novo modo de pensar a sociedade o gesto de buscar o passado para legitimar o presente. Nos anos 70, inaugurava-se no mundo a luta pela igualdade de direitos entre orientações sexuais bem como se engrossava o coro em favor da igualdade de gêneros e do fim do preconceito racial. Promover a experiência de olhar ao redor através de um ponto de vista mais humano, que privilegiasse não a paisagem, mas a natureza do olho de quem vê, foi o diferencial da matéria publicada pela referida revista O Pasquim naquele momento da história do Brasil. Depois dela, Madame Satã deixou de ser um personagem da cultura da Lapa, bairro central do Rio de Janeiro, e passou ser um símbolo nacional.

Dramaturgia impõe ao espetáculo enormes desafios
O texto de “Satã, um show para madame” parte de uma figura consagrada e o mantém como tal infelizmente. A peça começa com um homem entrando um lugar escuro e abandonado onde folhas de jornais amarelam esquecidas. Nessas páginas - aleatórias no espaço, mas estranhamente bem organizadas na ordem de suas citações -, ele lê informações sobre Madame Satã, que talvez tenha morado naquele local quando vivo. Os dois se misturam a partir daí. Ouve-se o homenageado contando sua própria história, mas a dramaturgia não considera a tese de que o olhar da gente por sobre nós mesmos não está imune à corrupção nem tampouco completamente corrompido. Se o texto da peça retira um olhar exterior por sobre a figura, ele substitui esse olhar por outro, mais apaixonado talvez, mas ainda assim único. Perde-se então a oportunidade de sugerir uma reflexão, porque a encerra em uma homenagem meritosa mas ainda assim superficial.

Alternando quadros expositivos, em que o personagem conta para o público sua história cronologicamente, com números musicais, resta ao público esperar pela morte do protagonista, quando se sabe que a peça termina. Esse excesso de previsibilidade, como já se apontou na avaliação dos demais espetáculos musicais biográficos, é fatal para o ritmo.

Leandro Melo em ótimo trabalho de interpretação
Leandro Melo luta contra o tempo que demora a passar e contra o palco preenchido sem bom uso do espaço, vencendo algumas dessas batalhas. O intérprete exibe força e carisma, apresenta ótimo uso do corpo, voz afinada, gestos claros e olhares firmes. É interessante notar como, com sua defesa, atravessa-se a imagem icônica de Lázaro Ramos, no longa-metragem “Madame Satã” (2002), dirigido por Karim Aïnouz, em 2002. O personagem, um célebre capoeirista em sua juventude, sem dúvida, oferece ao intérprete que almeja representá-lo nesse período vários desafios, os quais Melo vence com galhardia.

Nem o cenário, nem o figurino de Marcelo Marques contribuem para o espetáculo, talvez reforçando a concepção pouco amarrada da direção de Édio Nunes para a versão teatral do texto de João Batista Leite. Sabe-se que há um homem que descobre dados acerca de Madame Satã e o próprio, mas não se sabe quem é o primeiro. No lugar disso, está-se diante de um quadro obscuro, enigmático e pesado que não se modifica ao longo de toda narrativa, o que prejudica o ritmo. O figurino, com um momento interessante na saia vermelha, quando assume uma proposta mais conceitual, também fica linear e é pouco colaborativo. A iluminação de Russinho tem melhores participações no cruzamento de focos fechados no urdimento quando se ressalta a profundidade do espaço em que a história se dá e o recorte do personagem.

A montagem mistura canções da época com outras atuais, em um repertório valoroso composto por canções como “A dona do lugar”, de Noel Rosa, Ismael Silva e de Francisco Alves; “Na batucada da vida”, de Ary Barroso e de Luís Peixoto; “Basta um dia”, de Chico Buarque; e “Bolero de satã” de Paulo Cesar Pinheiro; entre outras. A ótima direção musical, em que as canções estão ajustadas ao tom do espetáculo e à voz do intérprete com fluência, é de Wladimir Pinheiro. Apesar das dificuldades a que ao espetáculo se sujeita, "Satã, um show para madame" vale a pena ser visto.

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Ficha técnica:
Texto: JOÃO BATISTA
Atuação: LEANDRO MELO
Direção: ÉDIO NUNES
Direção musical: WLADIMIR PINHEIR
Músicos: CLÁUDIA ELISEU, RALPHEN ROCCA, PAULO TINTONELLI e SÉRGIO CONFORTO
Direção de Arte e Figurino: MARCELO MARQUES
Iluminação: RUSSINHO
Coreografia: KIKO GUARABYRA
Preparação Corporal e Coch: WAGNER BRANDI
Designer Gráfico: ALEX VALENTE
Produção Executiva: ALEX LEANDRO
Produtor Assistente: DOUGLAS TEIXEIRA
Estagiaria de produção e Contrarregra: MARIANA
Consultoria jurídica: NATÁLIA PAIM
Consultoria religiosa: RENATO CHAVES DOS SANTOS
Direção de Produção: ALINA LYRA
Idealização: LEANDRO MELO
Produção e Realização: ALKAPARRA PRODUÇÕES
Assessoria de imprensa: GABRIEL MELLO