segunda-feira, 30 de novembro de 2015

El pánico (RJ)


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Elisa Pinheiro, Kelzy Ecard e Paulo Verlings
Foto: Felipe Pilotto

Comédia a la Almodóvar


Em “El pánico”, a direção de Ivan Sugahara melhora o texto do argentino Rafael Spregelburd a partir de um ponto de vista mais acessível e muito mais interessante ao público brasileiro. A montagem, inspirada na estética kitsch dos primeiros filmes de Pedro Almodóvar, encenada em portunhol, deixou o texto mais engraçado pela relação com as novelas latinas ainda transmitidas em nosso país. O elenco, dentro de uma concepção bem amarrada do encenador, mostra bom trabalho no geral. Destacam-se ainda o figurino de Joana Lima e o visagismo de Josef Chasilew. Depois de cumprir temporada no Espaço SESC de Copacabana, a peça está em cartaz na Sede das Companhias, na Lapa, onde fica até 14 de dezembro.

O quinto texto da "Heptologia de Hieronymus Bosch" de Rafael Spregelburd
A história começa logo depois da morte de Emílio (Marcio Machado) quando uma agente imobiliária, Rosa (Julia Marini), está tentando alugar o apartamento onde ele morava. Betiana é uma das candidatas, mas ela pressente energias “estranhas” no imóvel. Trata-se do fantasma do falecido, que é padrasto de sua colega Jessica (Elisa Pinheiro) nas aulas de dança da Professora Elyse (Suzana Nascimento). Jessica e Guido (Paulo Verlings) são filhos do primeiro casamento de Lourdes (Kelzy Ecard), viúva de Emílio. Para se verem livres uns dos outros, essa mãe e seus filhos precisam retirar uma grande quantia de dinheiro que está no cofre do banco. O problema é que, só depois de encontrar a chave desse cofre, poderão fazer isso. Começa, então, uma aventura deles atrás da memória de onde essa chave foi abandonada. Entram em cena aí a vidente Susana (Suzana Nascimento) e uma terapeuta de família (Débora Lamm).

Escrita em 2002 e levada à cena pela primeira vez no ano seguinte, a peça é o quinto texto que faz parte do que Rafael Spregelburg denominou de “Heptologia de Hieronymus Bosch”, o El Bosco (1450-1516), célebre pintor holandês renascentista. O quadro “Os sete pecados capitais” dele gerou os textos “A inapetência", "A extravagância, "A modéstia" (dirigido no Brasil por Pedro Brício em 2012) e a "A estupidez" (que teve montagem de Ivan Sugahara recente também). Depois de "El pánico", vieram "A paranoia" e "A teimosia", fechando o grupo de sete obras. "El pánico" se refere ao pecado da preguiça, esse representado na obra de Bosch por um homem cochilando diante de uma lareira acesa e de um gato dormindo enquanto, atrás de si, uma mulher chega para lembrá-lo de ler a bíblia.

É muito difícil estabelecer relações entre o quadro de Bosch e a peça de Spregelburd. O desafio, que aliás é bem pouco útil à fruição do segundo, fica menor se houver esforço em identificar nos personagens uma tendência deles em se acomodar. A professora de balé se apoia na sua antiga fama e as bailarinas nos movimentos mais fáceis. A gerente do banco na burocracia, a psicóloga nas marcas superficiais de comportamento, a mãe no modo como o destino se encarrega de cuidar de seus filhos. Esse movimento do olhar do espectador pode revelar alguns níveis para além do mais simples no texto positivamente.

 O título "El pánico" pode se referir a uma inscrição no quadro de Bosch que diz "Cuidado, cuidado, Deus vê". O pavor desse Deus, capaz de identificar o pecador e de puni-lo por seu pecado, tinha um objetivo prático: fazer com o que o homem mudasse de comportamento. Esse posicionamento moralista e um tanto quanto didático que caracteriza um dos pontos limítrofes entre a arte renascentista e a barroca é, na peça de Spregelburd, ponto de entrada para o melodrama exacerbado. O melodrama, um exagero do drama burguês do século XVIII e XIX, levou o moralismo às últimas consequências. A estética kitsch, da qual o espanhol Pedro Almodóvar é referencial no cinema, celebra o consumismo criticado na década de 80 por meio da comédia.

Ótima versão de Ivan Sugahara aproxima o texto de Pedro Almodóvar
Ivan Sugahara, assistido por Beatriz Bertu, acerta em optar pelo idioma “portunhol” (ótima tradução de Diego de Angeli) devido ao modo como os brasileiros consomem os teledramas latinos. As cores fortes e a variedade de tons e de estampas, assim como cortes de cabelos na alternativa das tendências, acompanhado do excesso de lágrimas, de gritos e de explosões emocionais, são aspectos facilmente identificados nas telenovelas dubladas. Tudo isso pode levar o público brasileiro às gargalhadas de maneira que o conjunto de opções da encenação tem a potencialidade de atribuir à dramaturgia original ainda mais força do que aconteceria em uma abordagem mais realista.

Na versão de Sugahara, quase desaparece do texto algum ponto de vista original de Spregelburd sobre o pânico dos vivos em relação ao mundo dos mortos. Nessa abordagem, o fantasma de Emílio é só mais um personagem um tanto especial porque pode saber aquilo que todos querem conhecer: onde está a chave do cofre. Nesse ponto de vista em que o personagem aparece mais humanizado, o espectador precisaria fazer muito esforço para reconhecer nele um representante de tudo aquilo que está no além. E que, conforme o título, poderia assombrar os que ainda estão aqui.

Bom conjunto de interpretações
Tem bom resultado o elenco de um modo geral, considerando os desafios diferentes que cada intérprete teve na divisão dos personagens. Marcio Machado (Emílio), Kelzy Ecard (Lourdes), Elisa Pinheiro (Jéssica) e Paulo Verlings (Guido) interpretam, cada um, apenas um único personagem, mas nenhum deles está propriamente comprometido com a força que leva a narrativa para adiante. Muito próximo do que acontece nos roteiros de Almodóvar dos anos 80, Lourdes, Jéssica e Guido apresentam o conflito inicial, mas se afastam dele: Lourdes desaparece, Jéssica relaxa com as amigas em uma festa privada e Guido se preocupa em resolver suas questões sexuais. Nesse sentido, o mérito dos intérpretes está no empenho em particularizar o universo dos seus personagens, confiando que isso será capaz de levar o interesse para adiante. E é.

Débora Lamm (a estudante Anabel, a bancária Cecília e a Terapeuta), Julia Marini (a agente imobiliária e outras), Pâmela Côto (Betiana e outras), Suzana Nascimento (a professora Elyse, a bancária Roxana e a vidente Susana) e Thais Vaz (a estudante Dudi e outras) vencem o desafio de apresentar figuras diferentes entre as várias que cada uma apresenta. No entanto, tal como o grupo anterior, seus personagens instauram um universo particular, mas nenhum deles está propriamente relacionado com a solução do conflito da narrativa. Perceber destaque em Lamm e em Nascimento é fácil sobretudo pelo modo como as duas atrizes souberam aproveitar bem as ótimas oportunidades que cada uma tinha em mãos.Em “El pánico”, há destaque no figurino de Joana Lima e no visagismo de Josef Chasilew pelo modo como o espetáculo materializa as concepções da direção que relacionam o texto à estética kitsch. A poluição visual, em clara concordância com idioma portunhol, mas também os movimentos, os tons nas vozes e as expressões, aparece assim em todos os aspectos do espetáculo. Na maneira como os personagens estão vestidos, porém, há um ótimo ápice nesse sentido. O cenário de André Sanches, que certamente será melhor observado no palco italiano do que o foi na arena, estabelece um dos poucos vínculos com o mundo sobrenatural. A iluminação de Aurélio de Simoni, em contraposição com o cenário, foi essencial na Arena, recortando a visão dos personagens e valorizando o palco positivamente.

Deliciosa comédia
O modo como o problema da peça (a busca pela chave perdida) parcialmente se resolve é um fato relevante nessa narrativa. Duelando-se isoladamente em contracenas que levam a narrativa através do tempo, mas não propriamente em favor dela, os personagens materializam uma tese do autor. O destino, ou Deus, continua com o poder de gerenciar a vida dos homens (mortos ou vivos) e será punido, na visão do texto, todo aquele que não estiver atento. Eis uma reflexão interessante que pode levar essa deliciosa comédia para além das melhores gargalhadas. 



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FICHA TÉCNICA
Texto: Rafael Spregelburd
Direção: Ivan Sugahara
Tradução: Diego de Angeli

Elenco / Personagens
Debora Lamm - Anabel, Cecilia Roviro, Terapeuta
Elisa Pinheiro - Jessica Sosa
Julia Marini - Rosa Lozano, Marcia, Úrsula
Kelzy Ecard - Lourdes Grynberg
Marcio Machado - Emilio Sebrjakovich
Pâmela Côto - Betiana Garcia, Regina
Paulo - Guido Sosa
Suzana Nascimento - Elyse Bernard, Roxana, Suzana Lastri
Thais Vaz - Dudi, Melina Trelles

Cenário: André Sanches
Figurino: Joana Lima
Iluminação: Aurélio de Simoni
Preparação Corporal: Duda Maia
Preparação Vocal: Ricardo Góes
Assistente de Idioma: Florencia Santangelo Formento
Assistente de Direção: Beatriz Wurts Bertú
Visagismo: Josef Chasilew
Fotografia: Felipe Pilotto
Projeto Gráfico: Romulo Bandeira
Direção de Produção: Pâmela Côto
Produção Executiva: Thaís Vaz
Produtor Assistente: Leonardo Paixão
Uma Produção: L7 Produções Culturais
Realização: SESC Rio
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany