Foto: divulgação
A montagem atual de “Eu, o Romeu e a Julieta” não tem nada a ver com a anterior de mesmo título e com o mesmo diretor. E é muito melhor. Se lá havia um desejo de partir para outro tipo de contexto narrativo que não se realizava de fato, aqui a coragem parece ter vencido. Produzido pela Companhia da angústia das pessoas, a montagem tem direção de Emanuel Aragão e, além dele, estão no elenco Antonio Pedro Coutinho, Gabriel Pardal, Liliane Rovaris, Marina Provenzzano, Renato Linhares e Rossini Vianna Jr. Sem quase qualquer ligação com a tragédia shakespeariana, o espetáculo é algo novo que oferece à pauta do teatro carioca mais uma experiência do que propriamente algo para apenas se assistir. Para quem está preparado para um espetáculo cuja duração é indeterminada, a peça fica em cartaz no Teatro Poeira até 30 de dezembro, às terças e quartas-feiras. Vale a pena conferir.
As marcas de liberdade no discurso cênico do espetáculo
Quando o público entra no teatro, os atores estão no palco, observando os movimentos da plateia. Desde o início, o clima é de não divisão entre palco e quem assiste (o que não quer dizer que quem entra será chamado a tomar parte no espetáculo que está para começar). O tom que se constrói, através dessa estética, é de cordialidade, de identificação, de celebração coletiva. Começam aí os valores e também a única questão negativa dessa versão de “Eu, o Romeu e a Julieta”.
De posse da palavra e do comando de todas as situações a que se assiste, os atores apresentam uma série de quadros todos eles repletos de marcas de liberdade. Alguns deles: Emanuel Aragão, esticando a mão, pergunta o que é preciso fazer para que o público sinta sua mão como se fosse sua. Renato Linhares lê alguns textos, entre eles o de uma família que discute o papel dos biscoitos recheados na alimentação. E narra uma história sobre o funeral de sua (?) avó. Linhares, Marina Provenzzano e Gabriel Pardal começam uma dança-luta que atravessa o tempo e o espaço. Pardal intercala os quadros com leituras de “cartas de suicídio” e Liliane Rovaris apresenta falas de grandes autores-mestres da história do teatro. Emanuel e Rossini têm entre si uma conversa sobre o amor. Durante toda a sessão, Antonio Pedro Coutinho preenche o palco com copos e taças cheias de água.
Em todos esses quadros, é bastante fácil de perceber que, embora eles estejam minimamente previstos, acontecem dentro de um sistema de regras que foge à marcação do teatro tradicional. Em termos de estética, são várias as consequências. Para começar, o momento (que é vivido por atores e por público ao mesmo tempo) fica cheio de atualidade, isto é, se destina a pontuar a importância do aqui e do agora que está acontecendo seja de um lado seja do outro da cena. Considerando que os personagens Romeu e Julieta se conheceram, se apaixonaram, se casaram e morreram em um espaço de cinco dias, o tempo é um dos aspectos da temática da tragédia shakespeariana que essa montagem recupera.
O lugar da palavra é outra questão relevante. Respondendo à pergunta feita por Aragão na abertura da peça, basta que se diga “esta mão é de vocês” para que o corpo do ator possa ser do público, pois isso faz parte do contrato entre palco e plateia realizado (e confirmado) há quase três milênios. Shakespeare, um dos maiores autores do barroco inglês, celebrou a importância da palavra em vários momentos, sobretudo na célebre cena do balcão na segunda cena do ato II.
Os copos que, ao longo de toda a peça, preenchem o palco remetem imediatamente à discussão sobre o risco físico de que o teórico mineiro André Carreira tão bem tratou. Quando o ator se coloca em situação arriscada fisicamente diante do público, o aspecto humano da audiência invade a relação que ele tem com a peça de forma avassaladora. Deslizando por entre taças de vidro com habilidade, os atores mantêm presa a atenção da plateia que reconhece o perigo e teme por quem está em cena. Vida e morte, como se sabe, são temas que dividem o lugar com o amor em “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare.
O modo inteligente e sensível com que a Companhia da angústia das pessoas opera com os vários sentidos de seu espetáculo (alguns deles foram sugeridos aqui) não lhes tira, porém, o lugar de comandante das ações. Em outras palavras, a participação do público, mesmo que apenas silenciosa em empregar sua atenção nos quadros propostos, é importante, mas ainda assim não é ela quem determina a hora da sessão começar nem terminar. Apenas os atores fazem isso (a menos que o público se levante e vá embora). Cento e quarenta minutos de espetáculo exigem muita habilidade em manter o elo sem maior fragilidade. E o contrato fica prejudicado na percepção dos méritos. Esse é o único ponto negativo de “Eu, o Romeu e a Julieta”.
A habilidade da produção em disfarçar reflexão teórica profunda
Há que se valorizar o modo como os intérpretes viabilizam o espetáculo como um todo e como ele se apresenta (ou se constrói) com a audiência. O desenho de luz e a trilha sonora, no seu todo dentro do tempo e do espaço da encenação, criam um quadro onde aparentemente se é prazeroso de estar. “Eu, o Romeu e a Julieta”, na sua ingenuidade que disfarça bem uma reflexão teórica profunda e privilegiada, remete à alegria da juventude que não entende a dureza dos conflitos entre Capuletos e Montéquios embora saiba que eles existam. Dá vontade de estar lá.
Desapegado do contorno da narrativa tradicional, mas sem desfazer-se dela, o pós-dramático é uma resposta da contemporaneidade às interrogações do hoje. Vale à pena manter os ouvidos abertos e o coração puro. Avante!
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Ficha Técnica
De e com:
Antonio Pedro Coutinho
Emanuel Aragão
Gabriel Pardal
Liliane Rovaris
Marina Provenzzano
Renato Linhares
Rossini Vianna Jr.
Arte:
Felipe Braga
Produção:
Gabriel Bortolini
Realização: da angústia das pessoas