domingo, 27 de dezembro de 2015

Cara de fogo (RJ)

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Foto: Renato Mangolin



Johnny Massaro e Júlia Bernat


Texto afiado em ótimos trabalhos de interpretação

Dirigida por Georgette Fadel, a produção brasileira do texto “Cara de fogo”, do alemão Marius von Mayenburg, traz pela primeira vez o autor para o sudoeste do país. Dele também são as peças “Parasitas” e “O feio”, dirigidas respectivamente por João Pedro Madureira e por Mirah Laline em montagens gaúchas que infelizmente não cruzaram o Rio Mampituba ainda. Os atores Isaac Bernat e Soraya Ravenle estão no elenco, interpretando os papéis de pais de sua filha na vida real, a atriz Julia Bernat. Ao lado dos três, estão também em cena Alexandre Barros e Johnny Massaro, esse último interpretando o papel título. Com muitos méritos estéticos, a produção repete no Brasil o sucesso que o texto já fez em montagens internacionais desde 1998, quando foi pela primeira vez encenado. A temporada no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, seguirá até o fim de janeiro de 2016. Vale a pena ser visto!

Texto fisga a atenção do início ao fim
Vencedor do Prêmio Kleist, “Cara de fogo”, escrito em 1997, é o primeiro texto de Marius von Mayenburg (1972) e foi encenado pela primeira vez no ano seguinte em Munique, no sul da Alemanha. A história se utiliza do fogo para sugerir debates acerca da contemporaneidade. O protagonista Kurt (Johnny Massaro) é um garoto na puberdade que se diverte incendiando pássaros mortos enquanto vai descobrindo a sexualidade. Vivendo com ele na mesma casa, a irmã mais velha Olga (Julia Bernat) está prestes a perder sua virgindade com seu namorado Paul (Alexandre Barros). Na outra ponta da vida, os pais de Kurt e de Olga (Isaac Bernat e Soraya Ravenle) têm vivências sexuais rarefeitas. Nesse sentido, “o fogo” da sensualidade arde de modo diverso em cada um dos personagens e Kurt, que passa a senti-lo por último, é quem mais sofre as consequências. Nas palavras desse personagem, o fogo simboliza, ao mesmo tempo, algo bom e ruim.

Ao longo da peça, a narrativa vai evidenciando a disfuncionalidade da família de Kurt: a desconexão entre pais e filhos, a conexão incestuosa entre os irmãos, as diversas reações de todos em relação ao namorado Paul. O desejo incendiário de Kurt, um modo radical de restaurar a lógica no seu mundo, começa a crescer na metáfora de Mayenburg ao longo da peça. Cheio de simbolismo, como a cena em que as velas de Kurt e de Olga passam a queimar em uma só chama, o texto tem diálogos econômicos, certeiros, essenciais. Com cenas chocantes, dispostas a mobilizar a o espectador, “Cara de fogo” fisga a atenção do início ao fim. 

Com méritos, direção de Georgette Fadel apresenta concepção que não se esclarece em todos os aspectos
Com qualificado ritmo no desenvolvimento da narrativa, além dos méritos no uso da paleta de cores, a direção de Georgette Fadel esconde uma concepção mais clara da obra em alguns elementos do seu discurso espetacular. Por exemplo, penduradas nos primeiros figurinos de Olga, várias ferramentas pesadas compõem a personagem. A Mãe aparece, em alguns momentos, também carregando esses objetos, que se espalham pelo palco durante a encenação. A opção, que é abandonada lá pelas tantas, não se esclarece no entanto. 

Ainda no que diz respeito aos figurinos (assinados por Beth e por Joana Passi de Moraes), os cinco personagens parecem ter saído de histórias diferentes. O Pai (Isaac Bernat) tem uma aparência muito realista enquanto os demais se apresentam de formas e níveis diferentes. Kurt está completamente no lado oposto do pai. O movimento visível que se dá na análise dos figurinos é interessante, mas sua contribuição para o todo é pouco nítida.

Do mesmo modo, a trilha sonora de Davi Guilherme participa de modos diferentes da defesa da narrativa. Há momentos em que há um investimento no melodrama, em outros ela se contrapõe, oferecendo novas referências. Se, ao ressaltar discordâncias no discurso, Fadel almejou usar a teatralidade para manter o espectador consciente, o feito nem sempre atinge sua máxima potência.

O cenário de Aurora dos Campos e a iluminação de Tomás Ribas são dois elementos que, bastante bem articulados, se impõem na defesa de uma metáfora que seja simbólica. Ela é capaz de propor universo paralelo através do qual se pode pensar o mundo não-ficcional brilhantemente. 

Ótimas interpretações de elenco qualificado
Todos os trabalhos de interpretação são ótimos, o que é outro mérito da direção de Fadel. Alexandre Barros (Paul) é um namorado viril que é incapaz de lidar com situações mais complexas e que fogem à sua moral. Isaac Bernat apresenta o Pai de modo carismático, ressaltando com docilidade a pouca compreensão dele acerca da realidade de seus filhos. Soraya Ravenle traz a Mãe com força e delicadeza, pautando a oposição entre esposa, mãe e mulher que marca sua personagem. O clamor dela diante de alguma sensação mais íntima é um dos momentos mais destacáveis do espetáculo.

Julia Bernat e Johnny Massaro estão intensos, plenos, entregues aos seus personagens Olga e Kurt. Seus olhares revelam o ponto de vista deles sobre seu mundo, incluindo o espectador nas bases que os fazem tomar aquelas atitudes e auxiliando a compreensão do contexto em que estão envolvidos. Tocados em momentos delicados de suas vidas, seus personagens se rebelam contra o mal em seu entorno e, apesar de provocar também um mal ainda pior, trilham seus caminhos em direção a algo que lhes parece bom. Um dos melhores momentos da peça é quando, quase no fim dela, há uma bifurcação que os separa em seu caminho. É lindo o modo como ambos intérpretes dão conta de expressar as reações deles diante dessa despedida.

Pais e filhos, em “Cara de fogo”, vislumbram momentos limítrofes de suas vidas: esses estão diante da vida adulta e aqueles contemplam a velhice. O futuro é assustador para ambos. Entre várias possibilidades, o fogo pode representar a liberdade dos padrões que deixam de existir quando ele os consome. Eis aqui um belo espetáculo! Aplausos!

*

Ficha técnica:
Texto: Marius von Mayenburg
Tradução: Letícia Liesenfeld
Direção: Georgette Fadel
Elenco: Alexandre Barros, Isaac Bernat, Johnny Massaro, Julia Bernat e Soraya Ravenle
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Figurino: Beth Passi de Moraes e Joana Passi de Moraes
Visagismo: Gebran Smera
Maquiagem: Lívia Brasil
Trilha original: Davi Guilherme
Colaboração musical: Guilherme Borges
Colaboração de som: Gabriel D’Ângelo
Gravação e edição da trilha: Antônio van Ahn e Davi Guilherme

Músicos:
Voz: Soraya Ravenle
Piano e Teclados: Davi Guilherme
Clarone, Clarinete e Requinta: Frederico Cavalieri
Percussão eletrônica: Rick de la Torre

Projeto Gráfico: Bruno Dante
Fotos: Renato Mangolin
Gerenciamento de redes sociais: Léo Ladeira
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Assistente de direção: Julia Ariani
Assistente de cenografia: Paula Tibana
Estagiária de cenografia: Alice Cruz
Adereços de cenografia: Luciana Vilanova
Cenotécnico: André Salles
Operador de Luz: Vitor Emanuel
Operador de Som: Gustavo Ottoni
Contrarregra: Leandro Brander
Gestão financeira: Rodrigo Gestner
Assistente de produção: Pedro Pedruzzi
Produção executiva: Débora Paganni
Direção de produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi
Produção: Diálogo da Arte Produções Culturais
Produtores Associados e Idealização: Isaac Bernat, Johnny Massaro, Julia Bernat, Pablo Sanábio e Soraya Ravenle
Realização: Crysolitha Produções Artísticas