terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Race (RJ)


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Foto: divulgação

Luciano Quirino, Yashar Zambuzzi, Heloísa Jorge e Gustavo Falcão


Ótimo texto de David Mamet inclui o preconceito racial na pauta do teatro carioca


Escrita e lançada na Broadway em 2009, a versão brasileira do ótimo “Race” estreou no Brasil sob direção de Gustavo Paso. A peça, traduzida por Leo Falcão, é a segunda de uma trilogia de montagens a partir do autor norte-americano David Mamet produzida pela Paso D’Arte Eventos e pela Cia. Teatro Epigenia. Antes veio o excelente “Oleanna” e a seguir virá “Hollywood” (no original, “Speed the plow”). No elenco, Luciano Quirino e Gustavo Falcão interpretam dois advogados contratados para defender o personagem vivido por Yashar Zambuzzi que, na peça, está sendo acusado de estupro de uma mulher negra. Heloísa Jorge, no melhor trabalho de interpretação do espetáculo, dá vida à assistente, essa que ganha lugar de destaque na narrativa desde o original. Os problemas na direção não impedem que se assista a um ótimo trabalho em cartaz no Teatro Poeirinha, em Botafogo, até 20 de dezembro.

Problemas na direção de Gustavo Paso
Nessa montagem de “Race”, há dois problemas na direção de Gustavo Paso: a falta de sutileza e o excesso de teatralidade. Quanto ao primeiro, desde o início, o espectador reencontra a estética de David Mamet em que o que realmente importa não é o fato em si, mas a capacidade dele de ser reinterpretado. Quando o advogado Jack Lawson (Gustavo Falcão) diz que “não há fatos do caso, mas apenas duas ficções”, Mamet confirma o seu prazer pela retórica, traço que fez e faz dele um dos dramaturgos mais importantes da cena contemporânea mundial.

Na história, o bilionário Charles Strickland (Yashar Zambuzzi) está sendo publicamente acusado de estupro por uma garota negra. Sobre a relação entre os dois, tudo o que o espectador sabe ou vem pela narrativa de Charles ou por informações acerca dos movimentos do processo jurídico que caminha ao longo da peça. Na acusação, consta que ele a teria agredido em um hotel, rasgado o seu vestido de lantejoulas vermelhas e proferido expressões preconceituosas. Quando “Race” começa, depois de procurar um defensor de origem judaica, o réu está no escritório de Jack Lawson e de Henry Brown (na versão brasileira, o personagem vivido por Luciano Quirino foi chamado de TJ), dupla de advogados formada por um de origem caucasiana e outro afrodescendente.

Considerado o tamanho do Teatro Poeirinha e principalmente o modo como o público está disposto em relação ao palco, não há sutilezas nessa montagem de “Race”. O palco está “à galeria”, isto é, a plateia está localizada de um lado e do outro do espaço cênico de maneira que, muito próximo dos atores, ela os vê e percebe também as reações de quem está sentado além da outra margem. O excesso exorbitante de gritos expulsa o valor das palavras, o jogo entre os vários sentidos de cada uma e principalmente o tom ardiloso característico dos diálogos jurídicos.

Além disso, há um exagero de teatralidade na intepretação de Gustavo Falcão e de Luciano Quirino. O que faz “Race” não ser conhecido como um texto que pauta uma problemática norte-americana, mas uma dramaturgia universal sobre o preconceito racial é a (des)humanidade no trato do tema. (Há quem diga, aliás, que o texto sugere com muito mais força o preconceito de gênero, o que é um ponto de vista interessante também!) Gestos fleumáticos, movimentos desenhados, figurinos combinando atribuem ao espetáculo um tipo de beleza que não é aquela do naturalismo. Durante toda a encenação, o espectador sabe que está assistindo a uma peça de teatro e, por isso, têm diante de si menos convites à mobilização.

Heloisa Jorge está brilhante
Gustavo Falcão (Jack) e Luciano Quirino (TJ) apresentam duas construções que se parecem com apenas uma. Os dois intérpretes, ao investir seus esforços em apresentar equanimemente o estereótipo do advogado maquiavélico misturado com o também figurativo personagem norte-americano-que-quer-vencer-a-todo-custo, se afastam do essencial. Mamet colocou seus diálogos na boca de um advogado branco sócio de outro negro por outros motivos mais valorosos que apenas casting. Em primeiro lugar, “Race” parte das teses de que o preconceito racial é o tema mais incendiário das relações humanas na contemporaneidade e de que só negros podem falar de preconceito racial com propriedade. Depois, e aí está o melhor dessa dramaturgia, de quem nem mesmo os afrodescendentes estão livres de serem preconceituosos (sob determinados aspectos), o que universaliza a discussão sem tirar-lhe a força.

Por outro lado, são ótimos os trabalhos de Yashar Zambuzzi (Charles) e principalmente de Heloisa Jorge (Susan) pela limpeza de suas contribuições. Em ambos, veem-se as nuances, percebem-se as intenções de um ponto de vista mais delicado, há tempo para acompanhar o modo como seus personagens vão se modificando no evoluir da dramaturgia. Jorge está brilhante principalmente em sua cena final.

O cenário participa da encenação nessa montagem de um modo diferente da original, mas igualmente interessante. Na Broadway, uma imensa estante de livros se impunha sobre o palco situando a questão histórica na narrativa. Lá como aqui, a escravidão só acabou na segunda metade do século XIX, há tempo insuficiente para resolver as diferenças (que jamais deveriam ter havido aliás). Luciana Falcon e Gustavo Paso optaram por um mobiliário moderno que expressa o poder do dinheiro na conquista de prestígio. Considerando a cena final e o valor da opinião pública em relação à autopiedade, o resultado é positivo. O figurino assinado por Falcon, tanto no que diz respeito à articulação dos tons e principalmente ao esforço em aparecer, esse elevado à máxima potência nos ternos com costura aparente nas cenas finais, contribui negativamente com o espetáculo pelos motivos já apontados acima. A iluminação de Paulo Cesar Medeiros e a trilha sonora de Andre Poyart fazem boa participação sem destaque.

A atualidade do tema em ótimo trato
“Race” estreou no ano em que Barack Obama se tornou o primeiro presidente afrodescendente dos Estados Unidos. Assim como “Oleanna”, escrito em 1992, o texto leva para o teatro um tema atual com perspectivas absolutamente contemporâneas. Lá como aqui, vale também observar o modo como o autor David Mamet dá acesso a um personagem inicialmente apresentado como frágil à maior importância dentro da obra. Com diálogos primorosos, em bela tradução aqui, vale a pena conferir esse trabalho.

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Ficha Técnica:

Direção: Gustavo Paso

Tradução: Leo Falcão


Elenco:

Luciano Quirino - TJ

Yashar Zambuzzi – Charles

Heloisa Jorge - Susan

Gustavo Falcão - Jack


Figurino: Luciana Falcon

Cenário: Luciana Falcon e Gustavo Paso

Iluminador: Paulo Cesar Medeiros

Trilha: Andre Poyart

Diretora de Produção: Luciana Fávero

Foto: Bruno Veiga

Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação

Realização: Paso D'Arte Eventos e Cia Teatro Epigenia