Dirigido por Victor Garcia Peralta, elenco apresenta excelentes trabalhos |
Excelência e rigor
“Quem tem medo de Virgínia Woolf?” é a peça mais famosa do mais importante dramaturgo vivo (e em atividade) da história do teatro universal. O norte-americano Edward Albee (nascido em 1928) a escreveu em 1962 e, desde então, montagens bastante meritosas mantêm acesas as chamas do bom teatro. O teórico Martin Esslin estava certo ao ler a obra a partir do gênero Teatro do Absurdo, na variação das atualizações para a América, em paralelo ao teatro europeu. Como em Sartre, Beckett ou Ionesco, temos aqui diálogos descontínuos e uma situação de aprisionamento que dizem mais sobre a complexidade do mundo contemporâneo do que o realismo, o romantismo ou mesmo o Teatro Pós-Dramático. O título pode, também, ser traduzido por “Quem tem medo de viver a vida sem falsas ilusões?”, pergunta que é respondida na fala final de Marta, esposa do professor Jorge, ambos anfitriões do jovem professor Nick e de sua esposa Mel. O chant, cantado sob a melodia de “Quem tem medo do Lobo Mau?” (em algumas versões, preferiu-se “Cabeça, ombro, joelho e pé” em função dos direitos autorais da canção do filme “Os três porquinhos”, da Disney), animou a festa dada pelo pai de Marta, reitor da Universidade onde Jorge e Nick trabalham, aos professores. Agora ele anima a recepção que Jorge e Marta oferecem em sua casa, começando por volta das duas da manhã. Dirigido por Victor Garcia Peralta e viabilizado pelo sempre excelente e bem vindo projeto VivoEnCena (louvores a Marcelo Romoff e a Expedito Araújo!), o espetáculo está em cartaz no Teatro dos Quatro, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, sendo uma das melhores, porque vibrante, produções de 2013 no país. Embora Zezé Polessa e Ana Kutner apresentem trabalhos esplêndidos de interpretação, são Daniel Dantas e Erom Cordeiro quem, pelos motivos a seguir expostos, se destacam. Outro ponto relevante é o cenário de Gringo Cardia nessa peça que só oferece valores à programação teatral carioca.
Jorge e Marta estão casados há 23 anos quando, nessa madrugada dos anos 60, nos Estados Unidos, recebem Nick e Mel em sua casa. Já bêbados e cansados, não só da noite mas um do outro, é preciso receber os visitantes para cumprir a ordem dada pelo Reitor de tratar bem o “novato” e sua esposa. Sem opção de não atender à campainha, a segunda festa começa sob a música de, essencialmente, quatro jogos cheios de perversidade: “Humilhando o anfitrião”, “Comendo a anfitriã”, “Pegar as visitas” e “Nosso filho”. Albee, assim, faz parceria com Ionesco e com Sartre evidenciando personagens vítimas de regras por eles desconhecidas. Essa é a metáfora e a contribuição do Teatro do Absurdo para a contemporaneidade: nós, humanos, permanecemos, como os gregos e elizabetanos – fantoches do destino, quase sempre incapazes de compreender as “linhas tortas” que os deuses escreveram. Jorge e Marta são carrascos um do outro desde que Marta percebeu que seu marido não era o “vencedor” que ela quis que ele fosse. Jorge, por sua vez, vinga-se de si próprio e de Marta, sendo ainda mais apático e, com isso, tragicamente irônico, do que por natureza ele parece ser. A crueldade constante e cada vez pior dos seus diálogos fazem direta oposição ao sentimentalismo hipócrita (e cafona) do modo como Nick e Mel se tratam, esses ainda no início do casamento e no começo da vida. Com o avançar da noite, e o gastar das falas sádicas, Jorge e Marta vão sendo vencidos pelo amor que um sente pelo outro. Por outro lado, o destino de horror vai sendo vislumbrado pelo jovem casal, esse também prisioneiro. (Albee sugere que Nick tenha se casado com Mel pelo dinheiro do sogro, um pastor evangélico.)
Ao contrário do que os jovens atores costumam pensar, o Teatro Pós-dramático não é um grande desafio, simplesmente porque o gênero traduz para a arte cênica as ações e as interpretações do homem contemporâneo. Nesse sentido, o chamado “teatrão” é que é um obstáculo pelo qual todo esforço vale a pena. Normalmente em peças contemporâneas, Ana Kutner “dá a cara a bater” no personagem de Mel e vence o desafio, trazendo foco, concentração, técnica e talento que depõem a seu favor e em favor do espetáculo positivamente. Zezé Polessa, por sua vez, apresenta um dos trabalhos mais marcantes do ano em interpretação de personagem protagonista, viabilizando uma Marta sensual, ferina, forte, sarcástica. O ritmo com que os diálogos são ditos por ela, ao atualizar a comédia da qual a atriz é expoente, promove um fluxo textual que não se viu em Elizabeth Taylor, ícone da construção desse personagem no cinema. Por isso, temos aqui uma Marta à brasileira que atende às referencias e à linguagem do público e, assim, fazem Albee chegar à plateia muito mais naturalmente. Considerando as boas prerrogativas dessas duas atrizes, seu sucesso não nos surpreende. O mesmo não se pode falar de Daniel Dantas e de Erom Cordeiro, embora os motivos que lhes deem destaques sejam diferentes.
Não há dúvidas de que Cordeiro é um bom ator, mas sua participação em “Quem tem medo de Virgínia Woolf?” só pode ser avaliada pelo interesse que o intérprete traz ao personagem de Nick, sem dúvida, a figura menos privilegiada do drama de Albee. Em vários momentos, a força de Cordeiro dá a Nick cores de heroísmo, fazendo-o co-protagonista ao lado de Jorge e não apenas coadjuvante. Não há um só momento em que Cordeiro esteja apagado em cena, apresentando um trabalho que situa o jovem professor em uma função opinativa, irônica, muito mais interessante do que se espera. Quanto à Daniel Dantas, quem está acostumado a sempre vê-lo repetir os mesmos personagens na televisão há décadas há de se surpreender aqui. Quanto mais chegamos ao fim da narrativa, maior ele parece estar diante da Marta de Polessa, o que é excelente visto o equilíbrio que se atinge com o feito. Mais uma vez, o teatro carioca tem no seu palco um conjunto de elenco que é unânime em positividade, conferindo justificativas para um aplauso agradecido ao trabalho da direção.
É verdade que os trabalhos de figurino (Marcelo Pies), de iluminação (Maneco Quinderé) e de trilha sonora (Marcelo Alonso Neves) são positivos, mas o destaque é da concepção de cenário de Gringo Cardia. “Quem tem medo de Virgínia Woolf?” é lido como Teatro do Absurdo, mas não menos corretamente tido como uma atualização do gênero neorrealista norte-americano, cujos expoentes são Tennessee Williams e Arthur Miller. Nesse sentido, as marcas de verossimilhança presentes na cena, essa vazada com vistas ao infinito, são sólidas bases para o dramaturgo e o diretor brincarem com seus quatro “fantoches”. O girar da sala, em uma interessantíssima mudança de eixo, faz o cenário deixar de ser apenas ilustrativo ou informacional, mas passar também a ser plenamente cênico, isto é, capaz de contribuir para a narrativa não apenas como argumento, mas como argumentador.
Muito antes dos milhares de amigos do Facebook, das cutucadas e dos curtires, dos smiles via Whatsapp, dos seguidores do Twitter e da venda quase livre do Rivotril, “Quem tem medo de Virgínia Woolf?” falava (e fala!) sobre a sedutora vida de ilusões sob a qual muitos de nós preferem se abrigar para não enfrentar a realidade. Quando elas se esvaem, na vida, restam apenas os vencedores. Jorge e Marta, assim, nos fazem um belo convite para uma noite de chagas, mas com uma essencial recompensa. Esse convite precisa ser aceito!
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FICHA TÉCNICA:
Texto: Edward Albee
Tradução: João Polessa Dantas
Elenco: Zezé Polessa, Daniel Dantas, Erom Cordeiro e Ana Kutner
Direção: Victor Garcia Peralta
Direção de arte / cenografia / programação visual: Gringo Cardia
Iluminador: Maneco Quinderé
Figurinos: Marcelo Pies
Visagismo: Fernando Torquatto
Trilha Sonora: Marcelo Alonso Neves.
Assessoria de imprensa: Approach Comunicação Integrada
Operador de som: Yuri Ribeiro
Operador de luz: Mario Junior
Lei de incentivo: Sodila Projetos Culturais
Produção executiva: Carmem Oliveira
Direção de produção: Giuliano Ricca
Produtores Associados: Zezé Polessa/Giuliano Ricca
Realização: MJC Polessa Produções Artísticas / Ricca Produções Artísticas
Excelente!!! Expõe a chaga de frustração e ódio ao não terem coragem de assumir a realidade ...
ResponderExcluirexcelente texto. motivou-me a assistir à peça. tinha dúvidas -- embora goste do daniel dantas que vi em 'macbeth' ao lado de renata sorrah e precise conhecer "...virginia woolf?", que não conheço ainda; talvez por isso tenha achado o argumento pesado e me desinteressei momentaneamente. sartre, beckett, ionesco... acho que gosto mais dos gregos e dos elisabetanos... mas me amarrei no seu texto. obrigado.
ResponderExcluirAssisti ontem. Concordo com você em relação ao Daniel Dantas. Lembro do último trabalho do ator em Macbeth e detestei. Ontem, Daniel brilhou no palco do Teatro dos Quatro. Só não gostei, justamente, do cenário.
ResponderExcluirRoberto, 20 de dezembro
ResponderExcluirGostei muito da peça e da interpretação de Dantas e Polessa que estão maravilhosos e no meu entender superam Burton e Taylor.
Recomendo...
Gostei bastante da montagem e da interpretação irrepreensível de Dantas e Polessa que estão maravilhosos e ácidos nos papeis de Jorge e Marta.
ResponderExcluirBrilhante . Recomendo a todos