quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Fábrica de chocolate (RJ)


Adriana Torres (ao lado de Henrique Manoel Pinho) em
excelente trabalho de interpretação
Foto: Kiko Ferreira

Fábrica de excelentes reflexões

“Fábrica de chocolate”, ao lado de “Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares”, é uma grata surpresa estética sobre o tema tão árduo da luta ideológica. Porque é muito fácil cair na cafonice quando se trata desse assunto, em investimentos românticos e rasos, a vitória da produção dá um prêmio para a programação teatral carioca e para aqueles que a acompanham com atenção. É muito superficial qualquer visão em que os torturadores dos porões da repressão (a ditadura acabou, mas a repressão não!) são vistos como pessoas malvadas. É preciso ir além e Mário Prata, dramaturgo da peça aqui em questão, foi. Repressores e Reprimidos são, os dois, lados diferentes da mesma moeda, pois ambos lutavam com seus meios para o estabelecimento de uma ordem que cada um achava a ideal. O único meio que as instâncias superiores encontra(ra)m para cativar seus soldados é esse: fazer acreditar que os 25 policiais suspeitos de torturar Amarildo o fizeram prestando um serviço à pátria, ao fim do tráfico de drogas, à ordem. As reflexões sobre as consequências disso é de segundo momento. Na arte, interessa o universo narrativo profundo que a possibilidade mostra: ver o torturador como um ser humano e, portanto, cheio de complexidade. Em cartaz no porão da Casa de Cultura Laura Alvim – chamada Sala Rogério Cardoso -, eis aí um espetáculo essencial na agenda teatral do Rio em 2013. 

A peça se passa no Brasil em 1975. Logo após “soltar” seis nomes de envolvidos com a luta contra a ditadura, o funcionário de uma fábrica de chocolates não resistiu à tortura e morreu diante de Baseado (Daniel Villas) e de Rosemary (Victor Garcia), seus dois torturadores. Enquanto isso, no escritório ao lado, o chefe de departamento Herrera (Henrique Manoel Pinho), sonhava em assistir ao jogo de futebol no Maracanã. Surge o problema (dramaturgia clássica): é preciso fazer algo com o corpo antes que a notícia se espalhe. Indignado por ter que cancelar a sua programação esportiva para resolver essa “pendenga”, Herrera culpa Baseado por, experiente nessas “missões”, ter deixado isso acontecer, e Rosemary, por não ter sido mais eficiente. É quando Piedade (Adriana Molina) é chamada. Interrompida em meio a uma partida de tênis, ela vem resolver o problema. Aí Mario Prata mostra o seu melhor: o texto “cozinha” o espectador, informando ao espectador parcimoniosamente sobre a forma como a questão será encaminhada. Piedade (atenção ao nome) é portuguesa (atenção à nacionalidade dela em relação ao Brasil), tendo prestado serviços aos movimentos repressores em seu país e na África antes de chegar a América do Sul. Com frieza e habilidade, seu poder e a forma como a personagem o demonstra são o motor essencial que faz girar essa história. É preciso fazer com que o torturado pareça ter se suicidado, de forma a virar o jogo e produzir uma notícia falsa antes que o resquício de fatos verdadeiros possam dar margem para a mídia sensacionalista. A “bomba” a ser publicada no dia seguinte requer a ciência do chefe do torturado/”suicida”, aquele que o delatou. No gabinete de Herrera, surge o Doutor (André Cursino), o dono da fábrica de chocolate (Em fábricas de chocolates, coisas boas são feitas. Aí mais uma metáfora interessante para o escritório onde toda a história acontece.). Por fim, um último personagem entrará, o Dodói (Guillermo Regenold), para produzir o ápice e o fim. Marcada por rápidos momentos em que a ficha de cada personagem participante da história é exposta, a peça tem ritmo dramatúrgico excelente, diálogos vibrantes, curvas muito meritosas. 

A direção de Luizapa Furlanetto é excelente igualmente. Há que se notar, antes da análise do objeto, o difícil trabalho da direção realista. Nesse tipo de peça, o diretor se esconde, se apaga diante do texto, fazendo força para parecer que fez apenas o que o texto “mandou”. É um esforço de “desaparência”, pois sabemos que, entre uma frase e outra, entre uma rubrica e outra, muitas nuances surgiram na sala de ensaios, mas que o espectador há de receber como “ordens” do texto. Assim, quanto mais apagada estiver uma direção cênica em uma peça realista, melhor ela é. E porque conseguiu apagar as marcas de teatralidade, mantendo-as lá, mas sem atrapalhar o discurso, Furlanetto merece aplausos iguais aos de Mario Prata. Bem dosados, os ritmos são excelentemente bem conduzidos e vale destacar a pausa do olhar de Piedade sobre Rosemary quando ela descobre que ele tem medo de gatos. “Fábrica de Chocolates” começa com três homens gritando palavrões um lado do outro para mostrar que a força mesmo está na elegância de Piedade, uma mulher. Por fim, termina dizendo que é o medo o maior torturador, aquele que é verdadeiramente capaz de matar, seja o repressor, seja o reprimido, ambos seres humanos. 

Todas as participações são excelentes, cada uma dentro de uma função semântica (a corrupção de Herrera, a ambição de Rosemary, a força de Baseado, o poder de Piedade, a ganância de Doutor, a selvageria de Dodói), o que é mais um mérito da direção de Furlanetto. Está, no entanto, em grande destaque o trabalho de Adriana Torres, por representar de forma coesa e coerente o personagem mais complexo de toda a encenação com galhardia. Todos os trabalhos são potentes em suas presenças: dicção, gestos, movimentos, energia. 

Quanto aos elementos outros da cena, é preciso também fazer uma ressalva. Se a direção teatral precisa desaparecer no teatro realista, o cenário, o figurino, a iluminação e a trilha sonora precisam aparecer a ponto de construir um lugar seguro o suficiente para o espectador, depois de desistir de encontrar “furos”, relaxar e curtir a história na qual optou por acreditar. Eis aí o motivo para o sucesso dos trabalhos de direção de arte e cenografia de José Dias, de figurino de João Freitas Henriques, de trilha sonora de Mario Portella e de iluminação de Alexandre Reis.

A prova final a servir como argumento de que “Fábrica de Chocolate” é um excelente espetáculo é a forma como, situados no escritório de Herrera, conseguimos imaginar em detalhes a sala de tortura, o torturado, Picuinha, o chefe de Piedade, os gatos e, principalmente, a matéria que sairá no dia seguinte. Vale a pena!!!

*

Ficha Técnica:
Direção: Luizapa Furlanetto
Texto: Mario Prata
Cenário: José Dias
Iluminação: Wilson Reiz
Figurino: João de Freitas
Gestores de Projeto: Daniel Villas e Henrique Manoel Pinho
Elenco: Adriana Torres, André Cursino, Daniel Villas, Guilhermo Regenold, Henrique Manoel Pinho e Vitor Garcia
Idealização e Realização de Hermes Frederico: Frederico e Osório Produções Culturais
Assessoria de Imprensa: Alessandra Costa

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