Em um dos melhores momentos, Bibi Ferreira e Nilson Raman interpretam Edith Piaf e Yves Montand |
Reverências!
Bibi Ferreira é um desafio para qualquer teórico de teatro. Todos nós sabemos que o que diferencia o teatro das outras artes é a relação triádica entre quem faz, quem vê e o que é feito. 2500 anos depois de terem sido escritas, podemos ler as tragédias de Sófocles. 250 anos depois de terem sido compostas, um estudante de piano pode tocar as músicas de Bach. As pinturas do renascimento estão vivas, “... E o vento levou” está disponível, o prédio do Theatro Municipal está de pé, ou seja, nenhuma outra arte precisa do artista para sobreviver e nem mesmo do público. Com teatro, não é assim. Em 1983, Bibi Ferreira interpretou Piaf pela primeira vez no Brasil, reinaugurando, no ano seguinte, o Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Trinta anos depois desse acontecimento marcante para a história do teatro brasileiro contemporâneo, o mesmo concerto é remontado e as novas gerações tem a mesma atriz diante de si em igual (ou quem sabe maior, força). Bibi dribla o tempo, os conceitos fundantes do teatro, a rigidez estética e vence a cruzada com extrema galhardia.
“Piaf, a vida de uma estrela da canção”, da autora inglesa Pam Gems, estreou no palco do Teatro Ginástico (hoje Sesc Ginástico) sob direção de Flávio Rangel, contando a vida da maior cantora francesa, Edith Piaf (1915-1963). O sucesso estrondoso deu a nossa maior cantora e intérprete a Comenda das Artes e das Letras da República Francesa por duas vezes – em 1985 e em 2009, orgulhando o Brasil e seus artistas. Agora, no ano em que se celebram os 50 anos de falecimento de La Môme, “Bibi canta e conta Piaf”, uma realização da Montenegro e Raman, voltou em uma temporada no Teatro Oi Casa Grande, com orquestra e coral, entre apresentações em outras capitais e, também, no Lincoln Center, em Nova Iorque. Na altura dos seus noventa anos e com belíssimo vigor físico (e vocal!), para nós, estar diante de Bibi Ferreira é um privilégio indulgente, uma honra purificadora, uma benção sem exageros.
Com alta dose de elegância, Bibi e Nilson Raman (mestre de cerimônias) narram a vida de Piaf enquanto suas canções são interpretadas pela cantora, pelo coro e pelos músicos. Com uma sutileza sábia e bela, Bibi dá vida para as letras, critica, sorri e faz emocionar. A discrição dos gestos faz oposição com a grandiosa potência vocal de forma que, em dupla, a articulação de ambos cria o referencial cênico que se espera para a fruição das músicas, essas cantadas em francês e sem legendas. Para os não falantes do idioma de Piaf, basta olhar para sua intérprete e a história está dada: uma atriz, diante de um público, interpretando uma personagem. É destaque também a sobriedade com que Raman conduz a narrativa – sem exageros, em postura aristocrática e com grande clareza e carisma. Como um corifeu, Raman representa o público ao lado de Bibi, dando a ela o cuidado, o respeito e o carinho que ela merece.
Cheia de palavras pomposas e um tanto quanto repleta de marcas exageradas, essa análise crítica está longe de expressar o arrepio que se sente ao ver alguém atravessar três décadas, trazendo Piaf de 1983 a 2013. Isso para não lembrar de “Minha querida lady” (adaptação de 1962 do musical “My fair lady”), de “Alô, Dolly” (de 1965, adaptação de “Hello, Dolly”), de “Gota d´água” (1975) e de “Bibi Ferreira vive Amália Rodrigues” (2001), entre tantos outros espetáculos desde 1946. Às portas de um novo espetáculo, em que interpretará as canções de Frank Sinatra, eis em Bibi uma determinação, uma disciplina, um talento inigualáveis. Reverências!
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