quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Conselho de classe (RJ)

Marcelo Olinto em excelente trabalho de interpretação
em "Conselho de Classe"
Foto: divulgação

Assistir é imprescindível

           “Conselho de classe” é uma peça instigante. O texto coloca em reunião quatro professores de uma escola pública, membros de um conselho de pais, alunos e funcionários, esses representados pelos professores, que também são pais e funcionários. Em questão, está, sim, as mazelas do ensino público nacional, mas muito mais que isso: a complexidade do homem, o lugar para onde nossas crenças nos levam, o desejo humano de paz e de descanso, além de seus valores éticos e morais. Sem dúvida, é um texto maduro de Jô Bilac, mas também um trabalho de ourivesaria de cada ator e sobretudo das diretoras Bel Garcia e Susana Ribeiro, cujos elogios se estendem a equipe. Vontade de rever várias vezes, vontade de sentar com os personagens e discutir (sou professor há 16 anos e, nos primeiros 5 anos, em escola pública de ensino fundamental), vontade de escrever essa análise que agora você lê. A peça está em cartaz no Espaço SESC - Mezanino e depois seguirá para a Sede das Cias. Nesse clima de manifestações nacionais e dia do professor, assistir à “Conselho de classe” é imprescindível. 

Na história, há uns dias, um aluno foi barrado na entrada da escola por usar boné pela diretora. Indignado, ele uniu-se a outros colegas, deles recebendo apoio, e a notícia se espalhou. O caso foi parar nos ensaios do grupo de teatro, que estava montando, sob a direção da professora de Artes, a peça “O pagador de promessas”, de Dias Gomes, cujo nome é também o da escola. No dia seguinte, a peça foi representada no ginásio, com a cruz de Zé do Burro servindo de meio de entrada da massa “embonezada” dentro da escola. Na confusão, a diretora foi agredida, hospitalizada e afastada por motivos de saúde da função. O conselho, então, precisa se reunir para dar conta de vários assuntos importantes antes do encerramento do ano letivo. Eis que um jovem diretor-substituto, interventor enviado pela Secretaria de Educação, aparece na reunião. 

Jô Bilac poderia ter escrito apenas um texto de conversas retóricas, cheias de filosofia, crises e idealismos. Felizmente, foi além. Em meio aos diálogos quase platônicos, há muitos intervalos e acontecimentos paralelos que dão base, escopo e cor para o que se diz. A professora que defende o equilíbrio se aproveita do ritmo ameno para vender roupas e produtos de beleza, além de utilizar o telefone da escola para fins pessoais. A professora que defende a ordem, a hierarquia, o cumprimento dos deveres e a retidão leva a chave do ginásio para a sua própria casa e mantém trancados parte da história da escola para motivos que ela considere privilegiados. A professora mais experiente e que ouve com mais atenção as posições também é a mais velha, a mais desacreditada e a mais querida do grupo. O interventor que vem defender a pureza das ações, o comprometimento, a responsabilidade é aquele que irá dar carona no seu carro para uma das professoras, pegando o volante imediatamente após beber uma latinha de cerveja. Assim, e muito mais, “Conselho de Classe” está longe de apenas expor os problemas das políticas públicas da educação, mas pauta a complexidade humana sob um ponto de vista ético e moral que inaugura um novo estilo em Jô Bilac (com menos força, o dramaturgo discutiu a profissão do crítico de teatro em “Caixa de Areia”). Por isso, toda a plateia sente o convite para a catarse, para a reflexão e para a discussão. O teatro cumpre o seu papel. 

Quando falamos em teatro aqui, falamos em Bel Garcia e em Susana Ribeiro, aqui assistidas por Raquel André, que assinam o transporte da literatura de Jô para o palco realizado pelo grupo Cia dos Atores. Com a maestria de quem conhece o idioma teatral, a dupla de diretoras dosa com galhardia cada informação que solta, de forma a virar o jogo, subverter a narrativa pelo seu oposto, reimprimir um ritmo que parecia ter sido perdido mas nunca o foi. O desenho de movimentação pelo palco é excelentemente usado, as pausas e os clímaxes nos momentos de diálogo, as intervenções externas (a água que falta, o banheiro sujo, o ventilador que pifa, as vozes que vêm da rua, o telefone que toca,...) e os momentos de reflexão dos personagens são usados em favor da narração e de sua fruição cênica com galhardia. O tempo passa sem que seja visto, a atenção está presa à velocidade com que as respostas vão sendo dadas às perguntas que o espectador vai fazendo à peça. 

São brilhantes as interpretações. Em personagens extremamente opostos, César Augusto e Paulo Verlings se dividem em trabalhos que viabilizam personagens ora inaptos diante dos acontecimentos, ora dispostos a fazer algo por si (buscar uma vaga na Secretaria, dar direção para o caos instalado na escola). Outra oposição se repete em Leonardo Netto e em Thierry Trémoroux, essa mais clara que a anterior pela força de seus personagens na história, em que os intérpretes dão vida a posições morais e éticas bastante diferentes em relação a função do educador. Com igual força, cada um dos quatro personagens apontados precisa ser forte para garantir o equilíbrio e, assim, sustentar a tensão e fazer o público ansiar pelo final quando o resultado poderá ser dado. Eles o são, o que é excelente. No entanto, “Conselho de Classe” parece ser para Marcelo Olinto, cujo personagem resume em si todo o carisma da profissão de professor (entre todas, a profissão mais honrada!), cujo personagem requer para si o carinho do público pela sua idade avançada e cujo personagem diz as coisas mais vitais de jeitos mais sutis. O verdadeiro grito de “Conselho de classe” está no sussurro de Tia Paloma, interpretada por Olinto, em um dos momentos mais importantes do espetáculo. No jeito de caminhar, na fala aparentemente despretensiosa, no olhar falsamente desperdiçado, nos gestos muito sutis, Olinto está excelente. 

A opção da direção em fazer personagens femininos serem interpretados por homens pode até reforçar algum tipo de preconceito, mas, sem dúvida, faz muito bem para a peça. Não tenho dúvidas de que, fossem cinco mulheres em uma reunião de professores sob um calor infernal, o resultado estético não seria tão bom porque a plateia demoraria mais tempo para se interessar pelo assunto. Essa demora possível é consequência, sim, de preconceito, pois é como se não déssemos o devido valor ao que diz um grupo de mulheres. No entanto, o fato de demorarmos mais para entender o jogo de atores homens serem chamados por nomes femininos é o “perfume” de que Bilac, Garcia e Ribeiro se utilizam para encantar a plateia de forma que, quando notamos, já estamos fisgados pela trama, sem possibilidade (nem vontade) de voltar. 

Ainda antes de terminar, vale uma nota para o cenário (Aurora dos Campos), para o figurino (Rô Nascimento e Ticiana Passos) e para a iluminação (Maneco Quinderé). São vibrantes dos múltiplos espaços que a ambiência providenciou à direção. Corredores, saídas, cantinhos, zonas de proteção e de plena exposição, momentos meramente ilustrativos e outros bastante narrativos: não há um só detalhe que não seja bem aproveitado na organização e na utilização do espaço. Quanto ao vestuário, é bastante interessante notar o quanto as roupas masculinas dão feminilidade aos personagens pelas nuances. Um relógio colorido aqui, uma tiara lá, uma calça apertada adiante, um cabelo bem penteado a seguir, uma alfaiataria bem feita por fim são portas de entrada para as mulheres que estão em cena, sem que a questão de gênero se torne um problema (os personagens não são homens nem héteros, nem gays. São mulheres e todo o resto não nos interessam naquele contexto de discussão profissional). O desenho de iluminação, assim como a trilha sonora de Felipe Storino, tem o valor de ser discreto, mas presente. As mudanças de luz acontecem e pontuam o ritmo da peça muito bem, mas não fazem felizmente nos esquecer de que estamos num frio e monótono ginásio escolar. 

Ao contrário do que dizem, 2013 foi e está sendo um excelente ano para as artes cênicas no Rio de Janeiro. “Conselho de classe” é argumento em favor disso. 

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Ficha técnica
Texto: Jô Bilac
Direção: Bel Garcia e Susana Ribeiro
Assistência de direção: Raquel André
Elenco: Cesar Augusto, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Paulo Verlings e Thierry Trémouroux
Figurino: Rô Nascimento e Ticiana Passos
Cenário: Aurora dos Campos
Iluminação: Maneco Quinderé
Trilha original: Felipe Storino
Direção de produção: Tárik Puggina
Produção: Nevaxca Produções
Coprodução: Treco
Realização: Cia dos Atores

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