terça-feira, 22 de outubro de 2013

Dias de setembro (RJ)

Lucas Sancho em cena, entre baú, papéis e "candelabros"
Foto: divulgação 

Sem consistência

O maior problema de “Dias de setembro” é que o espectador não tem em mãos marcas suficientes que o ajudem a se sentir seguro diante da peça (e nem tem provas suficientes de que é justamente a sua suposta ou possível insegurança que será útil para a narrativa). A proximidade quase íntima do público, que se dá a partir de uma relação não apenas geográfica (a plateia circunda os dois metros quadrados em que o ator atua sob uma luz muito baixa), mas também linguística (pois o público participa da peça, sendo carinhosamente acolhido e usado como referência no estabelecimento de uma conversa em que a história se conta), ajuda a construir a dúvida se a produção é uma peça (o ator interpretando um personagem diante do público) ou uma performance (ator e personagem estão tão misturados que o público não sabe onde começa um e termina outro). A interrogação é problemática: se é uma performance, a identificação sai prejudicada, pois o caso é isolado e a narrativa segue fria; se é uma peça, carece-se de mais distanciamento e de menos referências líricas para que a catarse possa existir e o público se emocionar. No Espaço Dois do Solar de Botafogo, Lucas Sancho, que assina a dramaturgia, a direção e interpreta o monólogo, esteve corajosamente apresentando a história do relacionamento entre Henrique e Dudu e, com a iniciativa, sugerindo uma bonita questão para quem gosta de refletir sobre a comunicação teatral, além de fruir arte e se entreter. 

A imagem de masculinidade que a figura do ator transmite entra em choque com o meio com que o ator parece ter construído o seu personagem. Cheia de trejeitos afetados, a construção criada, dirigida e interpretada por Sancho causa estranhamento no público que, desde o início, nota que não sabe se está vendo uma obra objetiva (peça) ou uma obra subjetiva ( performance) e, por isso, demora a entender como deve agir. Se a distância, afinal, entre Dudu e seu intérprete for pequena, “Dias de Setembro” gira sozinha entorno de si mesma e o público há de dever apenas testemunhá-la. Se for grande, é preciso que esse acordo seja mais claro a fim de fazer a plateia sentir-se a vontade para, a partir da história narrada, “purgar o seus próprios sentimentos”(conceito aristotélico de catarse). Na história, Henrique (Sancho) recebe o público em um apartamento que está há muito tempo fechado. Nesse lugar, durante alguns anos, moraram ele e seu marido Eduardo, relação essa que já terminou. Venta lá fora e o vazio sentido pelo anfitrião (apesar da presença do público convidado para adentrar nesse lugar) motiva-o a relembrar o passado. Começa aí a narração de como ele e Dudu se conheceram, como foi o pedido de namoro, como foi o desenrolar do relacionamento. A dramaturgia mistura os fatos narrados com pausas líricas (diálogos com o vento, por exemplo) em um esforço de parecer mais geral e menos específica, resultando exatamente no efeito contrário negativamente. Acontece que quanto mais o personagem Henrique fala de Dudu, mais fala de si mesmo e, nesse processo, menos fala do público (mais difícil é a identificação). Sem consistência dramatúrgica e sem firmeza na construção do personagem, a fruição resulta em tão cambaleante quanto o objeto. 

Utilizando apenas os momentos em que a história de Dudu e de Henrique é contada pelo segundo, nota-se um romantismo werthertiano que não é nada líquido (conforme Zygmund Bauman, em conceito citado na peça e no release), mas bastante concreto. Eis outra dúvida, agora filosófica, que a peça deixa. Henrique afirma que traiu Dudu antes que ele fosse traído pelo namorado, esse último cada vez mais distante. Nas relações líquidas de Bauman, não há traições, mas relacionamentos mais fluídos, com acordos mais abertos. O idealismo e a moral com que Henrique julga as próprias ações e as do companheiro ocupam um lugar na história da arte que é bastante fixo e, pelas indicações pseudo-contemporâneas, parecem aqui renegadas infelizmente. Nesse sentido, “Dias de Setembro” fala de amor, mas parece ter vergonha disso. 

Os recursos usados pela encenação remetem a um lugar íntimo e performático: as paredes do Espaço Dois são mantidas como estão (azulejos velhos, paredes enegrecidas, telhas de barro à mostra), há abajures, garrafa de vinho, pedaços de papéis e um aparelho de rádio antigo. Ao retornar para o passado, Henrique precisa de “amigos” com quem desabafar e que lhe dê coragem, ficando, assim, em um lugar lugubremente romântico (baú, cartas, "castiçais") e nada contemporâneo, apesar de requisitar, por vezes, esse tipo de relação com a plateia. 

Em tempos de reflexão sobre as relações humanas, essas definitivamente mais abertas a formas alternativas de orientação sexual, “Dias de Setembro” tem o mérito de conquistar o respeito para si, apresentando uma história de amor homossexual com a mesma seriedade com que se vem, desde muito, apresentadas as de heterossexual. É, assim, gratificante ver como a plateia reage carinhosamente, natural e positivamente ao espetáculo visto, apesar das dúvidas de ordem estética que esse deixa. 

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Ficha Técnica

Dramaturgia, Direção e Interpretação: Lucas Sancho
Supervisão de Ambientação: Paulo Denizot
Trilha Sonora: Banda Encarne
Produção Executiva: Carolina Hiller
Direção de Produção: Rodrigo Medeiros
Realização: R+Marketing

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