quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Vestígios (PE)

Carlos Lira (Cardoso), Marcelo Dias (Marcos)
e Roberto Brandão (Marcelo) em cena
Foto: divulgação

Temática rara em espetáculo bem vindo

“Vestígios” é um bom espetáculo, mas é melhor ainda por suas intenções. Nem o Brasil, nem qualquer outro país tem o direito de esquecer seus anos negros, esses que, talvez, no futuro saberemos, ainda nem passaram de todo. A peça produzida pelo grupo recifense Relicário Produções trata sobre a tortura como marca de uma relação de poder que, mais invasiva e mais terrível que as outras, existiu na história do nosso país em vários momentos de sua história (e ninguém ouse garantir que não exista mais). Dividido em duas partes, o cenário de Doris Rollenberg oferece a sala de tortura e a sala dos investigadores. O prisioneiro é visto por ambos que querem colher dele informações. Trilhando o difícil caminho limiar do melodrama ou do documentário, Antônio Cadengue tem ótimo resultado na direção cênica para esse texto de Aimar Labaki, já montado em 2005 por Roberto Alvim. Carlos Lira, Marcelino Dias e Roberto Brandão oferecem interpretações sólidas no trato desse tema difícil tanto do ponto da vista da estética como de sua fruição. Tendo estado em cartaz no Teatro Ipanema, é ótimo saber que, entre as produções brasileiras, esse tema não foi esquecido pelo teatro, mas aqui enfrentado com galhardia. 

Roberto Brandão interpreta um professor universitário de história que, muito recentemente, em uma de suas aulas, lecionou o tema tortura dentro do programa de história da igreja. Na manhã anterior a ser preso, acordou ao lado da cabeça de um cadáver. Assustado, a imagem lhe remeteu a uma mulher que ele conhecera dez anos antes por quem foi muito apaixonado. Um dia, ela havia lhe contado que tinha encontrado documentos que provavam uma relação obscura entre Estados Unidos, China e Rússia. Nunca foi provado, mas o professor sempre acreditou que essa descoberta foi o motivo do seu desaparecimento. De qualquer forma, o último encontro dele com ela foi há muito tempo e a cabeça do cadáver estava irreconhecível quando ele, assustado, recolheu-a e a deixou em uma mala em frente ao IML. Vítima de sua ingenuidade, as câmeras o identificaram e ele foi preso para dar explicações, a princípio, sobre a mala abandonada. Sem advogados para lhe defender, isolado em uma sala escura, os interrogatórios se sucedem deixando apenas uma coisa clara: na situação, há quem tenha poder e há quem não tenha. 

No texto de Labaki, a relação entre poder e tortura vai se construindo aos poucos. Não há curva dramática, mas apenas ratificação de nós narrativos já feitos, de forma que a evolução das cenas passeia pelos mesmos lugares, deixando o tema ainda mais sólido a cada novo diálogo. O final que é exposto pela dramaturgia aparece como uma surpresa que, na verdade, sempre esteve imanente. Na encenação, esse momento chega positivamente ao natural. É bonito ver o trabalho de Cadengue parecer desaparecer diante do texto e das interpretações: é nesse desaparecer que a direção mais aparece. 

Tem mérito as interpretações de Lira, Dias e Brandão, os dois primeiros dando vida aos papéis de investigadores, porque o lugar em questão é um desafio perigoso. Oficialmente, a tortura no Brasil deixou de existir no início dos anos 80, há trinta anos. Labaki não situa a história nesse contexto, mas num lugar posterior a esse momento embora indefinido. Ou seja, corre-se facilmente o risco do contexto parecer ou um forçoso exercício de museologia teatral, ou uma espécie de documentário, ou um melodrama clichê. Nada disso acontece: temos um drama realista com o peso de que ele precisa e com o peso que esse gênero também oferece. O trio de atores sustenta essa linha tênue com vigor, excelentes intenções, entonações calmas e dedicadas e movimentações precisas. 

Na concepçãoo de cenário (Doris Rollemberg), de iluminação (Saulo Uchôa e Dado Sodi), de figurino (Anibal Santiago) e de trilha sonora (Eli-Eri Moura), o espetáculo ratifica o cuidado que Cadengue, assistido por Rudimar Constâncio, teve na delineação dos personagens de Labaki. A estrutura, como um todo bem articulado, dá a ver uma história coesa e coerente em cujas partes está o cerne do todo. 

“Vestígios” é uma peça rara que presta uma contribuição rara à programação teatral brasileira. Que retorne mais vezes ao Rio. 

*

Ficha Técnica:
Texto: AIMAR LABAKI
Direção: ANTONIO CADENGUE
Assistência de Direção: RUDIMAR CONSTÂNCIO

Elenco CARLOS LIRA – Cardoso
MARCELINO DIAS – Marcos
ROBERTO BRANDÃO – Marcelo

Cenografia: DORIS ROLLEMBERG
Figurinos: ANIBAL SANTIAGO
Trilha Sonora Original: ELI-ERI MOURA
Iluminação e Operação: SAULO UCHÔA/DADO SODI
Direção de Movimentos e Preparação Corporal: PAULO HENRIQUE FERREIRA
Preparação Vocal: FLÁVIA LAYME
Programação Visual: CLAUDIO LIRA
Cenotécnica: MARC AUBERT
Assistência de Cenotécnica: KLEBER MACEDO, RAFAEL FIRMINO E FÁBIO FONSECA
Operação de Som: MARINHO FALCÃO
Assistente de Produção/Contrarregragem: ELIAS VILAR
Projeto contemplado com o PRÊMIO FUNARTE DE TEATRO MYRIAM MUNIZ/2012..
Produção Geral: RELICÁRIO PRODUÇÕES E CARLOS LIRA

3 comentários:

  1. Sinto-me feliz à crítica do Rodrigo Monteiro, da lembrança ao não esquecimento a um passado histórico do nosso País, diante aos olhos ainda presente em nossos dias, sem dúvidas! Da Peça Teatral " VESTÍGIOS " e aos colegas que participaram dessa belíssima Mostra a todos, Sucessos!
    Dolores Efrem. Recife - PE, 15.08.2013

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  2. Obrigado pela palavras bem escritas e conscientes!

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  3. Uma peça maravilhosa que pude assistir no Recife. Ponto para ela, ao retomar um assunto que soa datado para quem não sabe que a ditadura, o totalitarismo e o poder do Estado continuam firmes, por aqui e mundo afora. Que o diga o Egito e quem souber onde está Amarildo.

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