Leonardo Brício em excelente interpretação |
Ótimo espetáculo sobre a falta de lugar
De repente, nem no trabalho, nem na própria casa, um homem pode estar. Nem na casa de amigos, na de desconhecidos, nem em um banheiro. Nem nas montanhas, no interior, na cidade. “Nem (em) mesmo todo o oceano.” É sobre isso o terceiro e ótimo espetáculo da Cia. Omondé, dirigido (e dirigida) por Inez Viana. Sobre a situação de um homem que não é bem vindo em lugar algum, por sociedade alguma. Uma espécie de Medeia contemporânea que, ao vingar-se, comete um crime tão abominável que o torna, para sempre e em todo o lugar, um estrangeiro. Atualização do romance homônimo de Alcione Araújo (1945-2012), entre vários pontos positivos, um dos seus méritos é justamente o modo como o espaço foi concebido: o vazio. Aparentemente oposto ao sufocamento claustrofóbico, o vazio, quando vazio demais, acaba por ser tão apavorante quanto a falta de espaço. Outro é o jogo estabelecido entre os atores, em que cada todos eles interpretam todos os personagens. O jogo, que é bem jogado, é um indicativo de que qualquer um de nós poderia estar no lugar do protagonista, quando esse ainda tinha um lugar para estar. Por fim, o mérito maior da produção está em abrir artisticamente a discussão sobre a passagem dos 50 anos do Golpe Militar de 1964. Sem dúvidas, é um período negro da história (muito recente) do país que precisa ser revisitado com olhos bem abertos e coração firme: todos somos responsáveis, mesmo aqueles que não eram vivos, pois muitos já não está mais.
A história é contada pelo próprio personagem protagonista, de forma que os fatos narrados foram obviamente atravessados pelo seu olhar, por suas emoções. Nascido e criado numa pequena cidade do interior de Minas Gerais, o protagonista vem de uma família muito pobre, contexto esse que é responsável pelo cultivo de uma vontade de “crescer” na vida e dar orgulho para os seus. Com o passar do tempo, as situações vão levando esse personagem ao alcance do seu objetivo. Nesse sentido, temos acontecimentos e personagens impressionistas (uma visão de mundo embaçada pelas emoções de quem o pinta) em uma narrativa realista naturalista (o personagem como fruto do meio, sem culpa, nem mérito), cruzamento esse expressa a complexidade do desafio que Inez Viana tinha em mãos quando se dispôs a adaptar o romance escrito em quase 800 páginas e publicado em 1998. Narrar a trajetória de um médico que, por golpe do destino ou por incapacidade de não sucumbir a ele, se vê entre os torturadores da ditadura e é acusado de ter estuprado uma das prisioneiras é mais do que simplesmente contar, mas se posicionar sobre o fato. De forma excelente, o posicionamento de Viana, expresso na encenação de 80 minutos, é o apenas: é preciso pensar!, que deixa, para o público, o julgamento, opção estética essa que favorece o realismo naturalismo do enredo do romancista.
Como já se disse, a direção estabelece um jogo bastante inteligente de encenação, fazendo com que os atores (Leonardo Brício, Iano Salomão, Jefferson Schoroeder, Junior Dantas, Luis Antônio Fortes e Zé Wendell) se sucedam na interpretação de todos os diversos personagens, incluindo o do protagonista, sem trocar de roupas. Vestidos com uma calças sociais entre o cinza e o azul marinho, sapatos pretos e camisetas de física, os intérpretes estão neutros, mas informando, o que marca uma excelente concepção de figurino de Flávio Souza. O resultado é dois: de um lado, dentro da encenação, temos o indicativo valoroso de que qualquer um de nós poderia estar na pele do protagonista, o que humaniza a fruição positivamente. De outro, do lado da plateia, valoriza-se a capacidade de entendimento do público que, em início do terceiro milênio, já consegue fruir histórias cujo jogo é mais rápido e as marcas expressivas mais necessárias.
Há, no entanto, um problema da ordem da direção: o ritmo. Em fim de primeira temporada, “Nem mesmo todo o oceano” chega de forma linear ao público, com frases ditas em altíssima e regular velocidade, cenas estruturadas a partir de ações físicas , e com uma história narrada como sem curvas. A chave da questão é que, assim que se assimilam as regras que dão a ver a encenação (a forma, o excelente, porque criativo, jogo de movimentação e diálogos), a atenção se volta unicamente para o conteúdo. Esse porém, está visto a partir, principalmente, de uma verborragia bem intencionada que, além de causar problemas na dicção dos atores (que acabam por dizer muitas palavras por segundo), faz com que pareça não haver distinção entre os vários acontecimentos da vida do protagonista. Essa segunda consequência é atroz, porque apaga a possibilidade tanto de um conflito inicial, quanto de um ápice e de uma resolução. Inez Vianna não opta por uma linha crescente ou decrescente, quase não faz pausas, expressa muito, mas sustenta pouco, deixando apenas para o texto de Araújo a responsabilidade com o conteúdo. É uma grande história contada no palco, mas que, infelizmente, é quase asséptico como espetáculo, não tocando na ferida com coragem.
Iano Salomão e Luis Antônio Fortes apresentam bons trabalhos de interpretação: o primeiro bastante forte e o segundo valorizando a ironia, possibilitando personagens realistas que se mostram bastante íntegros (coesos e coerentes). As melhores participações são de Zé Wendell e de Leonardo Brício, cujas presenças cênicas são ativas, determinantes e quase agressivas, dentro da simetria apolínea (e brilhantemente militar) em que Inez Viana fundamenta a diegese. Os olhos são bem direcionados, há foco, há movimentos limpos e entonações bem postas no trabalho de ambos. Brício, que na maior parte do tempo interpreta o protagonista, desponta como uma das melhores interpretações do ano, ao lado de Paulo Verlings (“Maravilhoso”), Thelmo Fernandes e Ricardo Blat (“A arte da comédia”), Bruno Mazzeo (“Sexo, drogas e rock`n`roll”), entre outros. Infelizmente, Jeferson Schroeder e Junior Dantas não têm boas participações, ainda que o primeiro tenha bons momentos. Em ambos, as interpretações parecem calcadas em “tipos” que mais parecem dispostos ao riso fácil que à narrativa em si (com destaque para um péssimo momento em que Dantas interpreta o sogro do protagonista) negativamente.
A trilha sonora de Marcelo Alonso Neves e o desenho de iluminação de Renato Machado, essa última fundamental para a viabilização da concepção cenográfica de Cláudia Marques e da direção, são essenciais para a expressão de um mundo baseado no tecnicismo cartesiano: cheio de leis de causa e efeito, lógica matemática e equilíbrio, o que, sem dúvida, nunca foi real, porque também não humano. Daí vem a sua contribuição definitiva para a narrativa: ela expressa de forma clara o contexto em que vivem esses personagem, mortos em banheiros ao lado das urinas e das fezes, de que um dia eles quiseram se livrar, depois acabaram por analisar em laboratório, e que, agora, em meio a elas, viverão seus últimos minutos.
“Nem mesmo todo o oceano”, tendo cumprido temporada no Teatro Sesc Arena Copacabana, retoma uma velha diferença já trazida em “A poética” de Aristóteles. O filósofo, sabiamente, chama a atenção para a diferença entre ação e caráter na análise das tragédias de seu tempo. Segundo ele, um mau ato não caracteriza um mau homem e nem um bom ato pressupõe um bom agente. Desvendar essa complexidade é adentrar nesse universo que, agora, a Cia. Omondé nos felicita. Aplausos.
FICHA TÉCNICA
Autor: Alcione Araújo | Adaptação e Direção: Inez Viana | Consultoria Dramatúrgica: Pedro Kosovski | Elenco: Cia Omondé – Leonardo Bricio, Iano Salomão, Jefferson Shroeder, Junior Dantas, Luis Antonio Fortes e Zé Wendell | Cenário e Figurino: Flávio Souza | Direção Musical: Marcelo Alonso Neves | Iluminação: Renato Machado | Programação Visual: Dulce Lobo | Assistentes de Direção: Carolina Pismel, Debora Lamm e Juliane Bodini | Produção Executiva: Jéssica Santiago | Direção de Produção: Claudia Marques | Um projeto da Cia OmondÉ
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