sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Anticorpos (RJ)

Lu Camy em excelente trabalho de interpretação
Foto: divulgação

Ótimas interpretações em espetáculo confuso

Com pinta de “teatro contemporâneo”, a peça “Anticorpos” apresenta uma novela infanto-juvenil em um horário noturno no Mezanino do Sesc Copacabana. Na história, que se passa em uma época que não é a nossa, as pessoas vão tendo o acesso à atualização de partes de seu corpo desde quando nascem, de forma que possam viver para além dos duzentos anos. Não está suficiente claro, mas algumas dessas pessoas sentem-se chamadas a se tornarem, de fato, objetos: tacos de baseball por exemplo, completamente inanimados, mas, eis o lirismo, vivos. Escrito e dirigido por Patrick Sampaio, a história de Jorge começa quando seu tio, dono de um antiquário, entrevista candidatos para a vaga de subgerente. A caminho desse momento, Jorge conhece Glória, que ilegalmente trabalha nesse serviço de transformação de pessoas em objetos. A personagem central, cuja interpretação é o que há de melhor nessa produção, é Anelise, concretizada em cena por Lu Camy. Aos 26 anos, Anelise ainda é totalmente orgânica, isto é, nunca sofreu uma atualização. Por trabalhar no antiquário em questão, ela relaciona, de alguma forma, todos os personagens. O tom pretensioso da forma de contar a história é o que há de pior nesta que é a terceira produção da Brecha Coletivo. 

O jogo de esconde-esconde só é válido quando o público sai ganhando. De outro jeito, o que temos em cena é um exercício, uma atividade que só serve para que digamos “nossa, como é inteligente esse grupo!”. No caso de “Anticorpos”, o que leva o espectador para adiante, cena após cena, não é ver o que vai acontecer com essa ou com aquela personagem, mas entender que situação é essa, quem são essas pessoas e o que elas fazem, informações essas que só são dadas e, ainda sim, parcialmente, nos trechos finais. Próximo do fim, como que exausta pelas cenas curtas e pelos diálogos entrecortados, a dramaturgia de “Anticorpos” se curva ao melodrama. É quando o vilão se mostra vilão e a mocinha se mostra mocinha, ambos respeitáveis enquanto peças de um gênero cênico-narrativo com tanto valor estético como qualquer um outro, mas completamente diferente do que estava anunciado desde o início: a contemporaneidade, em cujas estruturas só cabem personagens profundos, cheios de complexidade e contradições. Porque não encara o ser humano a partir de sua complexidade, a história é infanto-juvenil, o que não é um desvalor.

Funcionária do antiquário do tio de Jorge (Eduardo Cravo) há seis anos, Anelise (Lu Camy) não consegue a promoção de empacotadora de objetos frágeis por ser correta demais. Quando o seu namoro com Luís (Alonso Zerbinato) termina, ela resolve mostrar para si e para o mundo que pode, sim, perder o controle de si própria e expressar quem realmente ela é. Presa em uma delegacia, quem vem salvá-la é Glória (Raquel Alvarenga), responsável legal pelo apartamento onde mora Anelise. Nesse apartamento, há muitos objetos sob a responsabilidade de Glória, ex-seres humanos talvez. Vítima do sistema, Anelise sucumbe no final da peça. (E o personagem de Luís só serve para dar um “colorido” maior aos personagens de Anelise (Luís é seu namorado) e de Jorge (Luís e ele são aficionados pelo mesmo super-herói)) Com enredo interessante, a peça perde por não ser narrada de jeito acessível a quem é apresentada.

Há diversos complicadores na dramaturgia tanto cênica quanto teatral de Sampaio: diálogos cortados, cenas curtas, cenário confuso, figurino mais ainda, iluminação sem coerência e trilha sonora com músicas indie rock (Luana Carvalho e Patrick Sampaio). As falas e as cenas escondem propositalmente informações sem que essa opção se justifique. A ordem das cenas segue o mesmo padrão infelizmente. Composto por pedaços de papel branco no chão e por abajures instalados no fundo, o palco tem também decantadores e outros instrumentos de laboratório químico no chão e no teto. A iluminação (Alessandro Boschini), junto do cenário (Felipe Braga e Julia Paranaguá), deixam ver uma clara necessidade de independência da história, o que aponta para o teatro pós-dramático, mas que é prejudicial nesse caso porque não cumprem a sua função primeira que é o de narrar seja a história dos personagens (drama) seja histórias paralelas (pós-drama). Jorge, Luís e Anelise vestem roupas retrôs (Patricia Muniz ), remetendo a um tempo que não é o mesmo de Glória, desconexão que também quer ser pós-dramática, mas é, na verdade, simplesmente outra obra de arte que não a peça “Anticorpos” (as projeções de Mariana Kaufman e as músicas da trilha vão na mesma direção). 

Zerbinato, Cravo e Alvarenga apresentam grandes trabalhos de interpretação, com destaque para Lu Camy. Apesar de mal construídos dramaturgicamente, as figuras ganham solidez nas cenas pelo reforço das características mais superficiais: a ingenuidade de Anelise, a frieza de Jorge, a infantilidade de Luís e a maturidade de Glória. O texto é bem dito, o discurso é carismático, os movimentos são articulados entre si. O cansativo esforço de juntar as peças que formam a história de cada um e de todos, apesar de não recompensado de todo, dá resultado, isto é, ao final, sabemos de quem se trata cada um. Camy emociona, fisga a atenção, dá eixo para essa tempestade de elementos justapostos mas não articulados que há em cena. Por isso, o destaque positivo a ela. 

Apesar do título, que afinal permanece com significado ainda obscuro infelizmente, “Anticorpos” parece tratar da objetivação do humano. Na sede por se perpetuar no tempo, acaba-se perdendo justamente o que dá vida ao tempo. Nesse espetáculo, a Brecha Coletivo parece ter caído na armadilha que ela mesmo questiona. Com boas intenções de fazer um cenário incrível, um figurino invejável, projeções lindas, esqueceu-se da história e sobretudo de quem a ouve. Ficam felizmente as ótimas interpretações. 

*

Ficha técnica:
direção e dramaturgia de Patrick Sampaio
a partir da composição "A Cadeira", de Lu Camy.

atuação e criação Alonso Zerbinato (Luís 04), Eduardo Cravo (Jorge The Moustache), Lu Camy (Anelise) e Raquel Alvarenga (Glória).

assistência de direção-dramaturgia e “stand in” de Anelise Mayara Yamada

colaboração em texto Lu Camy

cenário Felipe Braga e Julia Paranaguá

iluminação Alessandro Boschini

figurino Patricia Muniz
assistência de figurino Cesar Marquez

projeções Mariana Kaufman

música original Luana Carvalho
tocadas nas cenas do término e do toque

trilha sonora Luana Carvalho e Patrick Sampaio
efeitos sonoros Átila Calache

programação visual Felipe Braga

interlocução de roteiro Bruno Mello e Mariana Kaufman
pesquisa preliminar Lu Camy e Raquel Alvarenga
colaboração em pesquisa preliminar Kamilla Oliveira e Livia de Bueno
interlocução filosófica Gabriela Serfaty
visagismo Cesar Marquez

iluminação em “work in process” itinerante Fábio Prestes
produção executiva em “work in process” itinerante Robson Agra
assistência de direção-dramaturgia em “work in process” itinerante Alonso Zerbinato

fotos de estúdio João Gabriel Salomão
fotos de divulgação Bruno Mello

cenotécnica Marmello Arte

pré-produção Estefania Lima
produção executiva Aline Mohamad e Flora Genial
direção de produção Patrick Sampaio

realização BRECHA COLETIVO e SESC RIO

co-realização PROJÉTEIS COOPERATIVA CARIOCA DE EMPREENDEDORES CULTURAIS

2 comentários:

  1. Concordo em grande parte com a crítica. A peça é interessante mas realmente tem momentos em que é difícil entender a trama.A Lu Camy está mesmo sensacional na interpretação. Vale a pena ver.

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  2. Eu moro em Cuiabá-MT e tive o prazer e ver a peça, pois naquele momento desfrutava férias no RJ e hospedei-me no SESC de Copacabana.
    Sou pesquisadora da linha Estudos da Cultura Contemporânea e o evento atendeu plenamente minhas expectativas.

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