sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Amor e ódio em sonata (RJ)

Amandha interpreta Sônia Tolstói, vencendo bem o desafio
Foto: divulgação
Um bem feito teatro de palavras

“Amor e ódio em sonata” está em sua terceira temporada de sucesso no aconchegante teatro do Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Com texto e direção de Leonardo Talarico, a peça tem o mérito de encarar com coragem a vida de Sônia Tolstói (1844-1919), esposa do escritor russo León Tolstói (1828-1910). Ao contrário do que se pensa, a relação conjugal da personagem é apenas mote que pode estar empurrando os espectadores para o teatro, mas não é o que os mantém lá e faz dessa produção dona merecida de tantos elogios desde que estreou. No seu interior, está a história de uma senhora que sobreviveu a um casamento de longos 48 anos, apesar de sentir-se tão carente de atenção, de amor, de reconhecimento. É a ânsia de Sônia por essa “recompensa” que faz a história se movimentar por cento e cinco minutos. São os argumentos distribuídos na narrativa que nos fazem julgar se ela merece ou não o que solicita. Outro mérito, é sem dúvida apresentar-se como um teatro de palavra, de discurso verbal, de retórica. Não há ação dramática, o que faz cair por terra a hipótese (caduca) de que é o movimento que faz o teatro ser (bom) teatro. A ter vida longa! 

Talarico partiu do conto “Sonata a Kreutzer”, de Tolstói, para chegar na dramaturgia em questão. O caminho foi longo. Se lá havia a versão do escritor sobre sua vida familiar, aqui temos a versão de Sônia (personagem interpretada Amandha), que fala em primeira pessoa. O noivado que durou apenas uma semana, os primeiros dias de dura convivência com o novo marido, o nascimento dos treze filhos, a morte de cinco deles, a fama, a nobreza, o árduo trabalho de cópia e de revisão dos textos de Tolstói. Passo a passo, a vida de ambos é contada por Sônia após a morte do marido, ela já uma senhora. Cada lembrança é revivida em sua intensidade: a coragem de menina se transforma em uma carência compulsiva ao longo das quase cinco décadas. León se ausenta na construção dos personagens e das tramas, se dedica à amante (uma camponesa citada), se apaixona por uma crença que ele próprio não pratica e, por fim, a substitui em importância por uma das filhas, Sasha (Juliana Weinem). No final da vida, excomungado pela igreja e odiado pelo governo, Tolstói põe em risco a segurança financeira da família, o que atinge Sônia quase como um golpe fatal. O “amor” e o “ódio” de que se trata no título estão ambos em Sônia, que ama o marido e, ao mesmo tempo, o odeia, nessa uma relação conturbada a que o público tem acesso através dos olhos de Talarico. (A peça não é um documentário, mas um drama realista e talvez seja esse um dos seus maiores méritos.) 

A presença modesta na dramaturgia de Sasha é um bom recurso para a dramaturgia. Ainda que não modifique em nada a curva narrativa, já que Sasha não faz contraponto, a filha-inimiga sustenta a ideia de que há outros pontos de vista na história contada, outros meandros e uma profundidade ainda maior do que já está dado. Não há, em cena, uma briga entre as duas, embora as desavenças estejam bastante claras. A ausência do embate está na certeza de que há apenas um responsável: Tolstói, ao mesmo tempo, marido e pai. A convivência conflitante, na história e no palco, sublinha uma complexidade que o teatro realista psicológico proporciona como raramente outros gêneros: ali está a crítica à hipocrisia das relações sociais e familiares. 

O texto e sua força são melhores do que as interpretações, ainda que essas sejam boas. Amandha está bem em cena, apesar de um mau uso da voz: há muitas palavras que ora não se ouvem ou não são compreendidas, um tom grave que é muitas vezes mal solicitado e uma ausência de sensibilidade, essa quase sempre substituída pela força. Vale lembrar que a atriz é muitos anos mais nova do que a personagem que interpreta, o que abrilhanta o resultado haja vista o desafio transposto. Há bons movimentos, excelentes pausas e boa dosagem das emoções. Juliana Weinem, cujo personagem é dificílimo, tem bom resultado, esse conseguido pela manutenção da frieza, da dura sobriedade, da impassividade que, em um determinado momento, se desmancha, causando seu ápice positivo. Os aplausos seguidos de gritos de “bravo!” que encerram a fruição coroam os bons trabalhos respectivamente de dramaturgia, interpretação e direção. 

Com belíssimo figurino de Marcelo Marques e boa concepção de trilha sonora, “Amor e ódio em sonata” propõe importantes reflexões: a responsabilidade de um com o outro seja na relação conjugal, filial ou em qualquer outra, mas também a importância da manutenção de um teatro cujo drama esteja vertical, em direção a uma profundidade que desvende o homem em sua complexidade e não apenas nas soluções de tramas e sub-tramas entretetedoras. Aplausos e votos de vida longa! 

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FICHA TÉCNICA
Concepção, Texto e Direção: Leonardo Talarico
Supervisão: Amir Haddad
Elenco: Juliana Weinem e Amandha
Participação Especial em off: Luis Melo
Cenografia e Figurino: Marcelo Marques
Projeto de Iluminação: Leysa Vidal
Trilha Sonora: Leonardo Talarico
Produção: Três Ideias e Soluções Culturais
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Realização: Os Insubmissos Companhia Critica de Teatro

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