sábado, 22 de junho de 2013

Duas mulheres em preto e branco (PE)

Sandra Possani e Paula de Renor em espetáculo
dirigido por Moacir Chaves
Foto: Rogério Alves e Camila Sérgio 


A contemporaneidade na força de Ronaldo Correia de Brito

O romance em cena está na moda e é bem vindo. “Duas mulheres em preto e branco”, com direção de Moacir Chaves a partir do conto homônimo de Ronaldo Correia Brito, é uma atualização desse sistema que, aos poucos, vai se construindo enquanto gênero cênico-narrativo. A potência de sua estrutura encontra eco na contemporaneidade por exigir dela justamente algo que ela não tem: tempo. Em cena, Paula de Renor e Sandra Possani são Letícia e Sandra, duas amigas que chegam à meia idade juntas desde os tempos de estudantes. Uma traiu a outra, tendo um caso com seu marido. A amizade precisa ser discutida, talvez, mais que o amor. Em cartaz no Teatro Serrador, a peça estreou na 19a edição do Porto Alegre em Cena e, depois, fez temporadas em Recife e participou de vários festivais do Brasil. Apesar de um tanto quanto hermético, o trabalho exibe boas interpretações, boa direção e ótima articulação de todos os elementos. 

Como toda boa obra contemporânea, as análises que vierem de “Duas mulheres em preto e branco”, sejam enquanto conto, sejam enquanto peça teatral, ficarão melhores com o tempo. Na medida em que o distanciamento permitir que se observe as aproximações que o texto (literário e cênico) tiver com outros pares, serão permitidas reflexões que expressem mais propriamente as bases de um gênero que , agora, está surgindo. No caso do teatro, podemos dar o nome de “romance em cena” ou “romance encenado”, o que nomeia um tipo de dramaturgia que resgata a literatura dita no palco, sem torna-la subserviente. Uma vez que tratam-se de duas artes diferentes e que exigem fruições adversas, o equilíbrio ideal que os espetáculos desse tipo parecem buscar só vem com o uso da força. Daí o hermetismo: é externa à obra a intenção de não abdicar de nada que esteja escrito no romance (nesse caso, conto). Em outras palavras, eis aí um dogma, isto é, uma regra que não surge de uma necessidade de expressão, mas gera os limites de sua concretização. O resultado é um jeito muito peculiar, sobretudo no século XXI, de encarar o tempo cênico-narrativo. 

“Duas mulheres em preto é branco” é um espetáculo cuja narrativa é bastante lenta, mas felizmente nunca monótona. Como as intérpretes (Renor e Possani) se dividem na viabilização das personagens (Letícia e Sandra) e na rapsódia (o narrador onipresente do conto de Brito e da dramaturgia cênica de Chaves, assistido por Miriã Possani), é preciso tempo para o que o espectador perceba: a) quem são as personagens; b) quais as marcas de rapsódia; c) qual é o conflito; e d) como a ação se desenvolve. Em um vai e vem de tempo, ora passado, ora presente, ora passado do passado, a narrativa vai se estruturando aos poucos, com cuidado, com atenção, em detalhes de forma que o todo resultante seja uma estrutura grandiosa e forte. A cada passo, mais o espectador se aproxima do universo e, consequentemente, esse vai lhe aparecendo maior. Porque instigante, a força que move a narrativa é contínua e é essa a chave principal que finca a proposta na contemporaneidade: a peça olha com superioridade para os segundos e minutos que passam além da narrativa, exigindo que eles fiquem de joelhos sob suas ordens, pois nem tudo tem o padrão rítmico da internet. 

O expressionismo poderia ajudar a ler as deformidades do cenário e do jogo cênico (há muitas diagonais em toda a estrutura). O surrealismo poderia auxiliar na percepção do lirismo da narrativa: a música, a dança, a bebida, o tiro, o beijo, a grande cama. A tragédia contemporânea (Beckett principalmente) serviria para chamar a atenção por sobre as cordas invisíveis que impedem Letícia de fazer o algo que ela quer fazer. O neorrealismo justificaria a história acontecer entre personagens simples, cotidianos, banais, sem qualquer importância e, por isso, tão importantes. Mas nenhuma dessas lentes dão conta do todo de “Duas mulheres” e está aí outra marca fundamental de sua contemporaneidade. 

Paula de Renor e Sandra Possani exibem bons usos de seus repertórios expressivos, o que, em alguns momentos, faz ver o hermetismo já apontado quanto ao todo. Os melhores momentos são os de contracena, apesar de aparecerem raramente nessa narrativa, o que é uma pena. As diagonais já citadas do cenário de Fernando Mello da Costa merecem destaque por proporcionar níveis de profundidade inteligentes à fruição. A paleta de cores, tanto do cenário quanto do figurino de Walter Homes, é um dos elementos mais bem utilizados: a exploração torrencial das variações do pastel dá a ver um quadro sépia que referencia potentemente a fotografia dos filmes em preto e branco, citados no texto. É positiva também a trilha sonora de Tomás Brandão e Miguel Mendes, fazendo alusão aos carrilhões, ao ultra-romantismo e ao trágico como segunda opção de entendimento, e a iluminação de Aurélio de Simoni.

O escritor cearense Ronaldo Correia Brito, autor de obras preciosas como “Faca” e “O livro dos homens”, é um dos contistas mais interessantes da literatura brasileira contemporânea, se não o seu maior. Ao trazê-lo na íntegra para o palco, a Remo Produções Artísticas e o Centro de Diversidade Cultural Teatro Armazém, que assinam a realização, estão de parabéns pela homenagem. A ser visto! 

*

Ficha técnica:
Texto: Ronaldo Correia de Brito
Direção: Moacir Chaves
Assistente de direção: Miriã Possani
Trilha Sonora e operação de som: Tomás Brandão e Miguel Mendes
Figurino: Walther Holmes
Cenário: Fernando Mello da Costa
Iluminação: Aurélio de Simoni
Operação de luz: Beto Trindade
Preparação corporal e coreografias: Rogério Alves
Preparação vocal: Flávia Layme e Rosemary Oliveira
Assistente de produção: Elias Villar
Produção executiva: Keila Vieira
Produção geral e administração: Paula de Renor

Elenco: Paula de Renor e Sandra Possani

Um comentário:

  1. Caro Rodrigo,
    sou Ronaldo Correia de Brito e escrevo para lhe agradecer o ótimo texto publicado no seu blog. Assim que o li, postei uma mensagem, mas creio que ela não chegou. São sempre precários esses sistemas de postagens dos blogs. Seu texto é generoso e tem a qualidade de não ser pretexto para dissertação de uma tese, coisa comum na crítica brasileira atual. Os jornalistas desenvolvem uma ideia sobre um livro, ou espetáculo, ou filme, uma criação pessoal, às vezes brilhante, mas que não tem nada a ver como o objeto analisado. Eles se regozijam com o triunfo de suas ideias, teorias e hipóteses, se afastando completamente do que analisam. O fundamento desse tipo de crítica é a gracinha, o deboche, o brilhantismo. Seu ensaio é exatamente o contrário.
    Em nenhuma linha você desfoca a atenção de Duas mulheres em preto em branco: do conto encenado, da direção, do trabalho das atrizes, da iluminação, da cenografia e da música. É generoso, sem nunca deixar de ver o que falta e o que excede. "Duas mulheres em preto e branco" é uma narrativa complexa, me deu trabalho escrevê-la pelo jogo com os tempos de ação, pelas idas e vindas do presente ao passado, por apelar a cenas aparentemente sem nexo com narrativas exteriores, mas que entram para exacerbar os dramas. Exemplo: a citação de um desastre nuclear como reforço ao desastre das duas personagens. Você percebeu essas nuances, foi tocado por elas; percebeu as dificuldades do começo (o conto também causa esse estupor inicial, a vontade de desisitir de ler); a encenação lenta, monótona, num tempo em que a maioria opta pelo aceleração quase histérica.
    Grato pelo seu olhar e por ter escrito sobre o que viu e sentiu.
    Um grande abraço aqui do Recife, espero encontrá-lo qualquer dia desses.
    Ronaldo.

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