sexta-feira, 7 de junho de 2013

O que você mentir eu acredito (RJ)

Betina Viany em excelente trabalho de interpretação
Foto: Silvana Marques
O melhor texto de Caio F. escrito por Felipe Barenco

 “O que você mentir eu acredito” é a melhor peça de Caio Fernando Abreu (1948-1996) embora não tenha sido escrita por ele, mas por Felipe Barenco. Nessa dramaturgia, preservam-se a força imagética das palavras e o ritmo frenético de libertar-se da consciência. (Assim como a literatura de Clarice Lispector) Os contos do contista gaúcho, que também escreveu romances e peças teatrais, são referencias na contemporaneidade por traduzirem, ao mesmo tempo, duas forças conflitantes no século XX: a tragédia e a efemeridade do momento na avalanche da cultura de massa. De um lado, há um homem aprisionado pela obrigação de a) ser feliz; e b) marcar a sua existência. De outro, o mesmo homem sabe que 15 minutos (ou segundos, ou curtires) de fama são suficientemente para a síntese de ambos os objetivos e que isso é terrível. Daí que, porque Barenco conseguiu, utilizando as palavras de Caio, construir personagens e situações tão referenciais e, da mesma forma, tão comuns é que se justifica a tese de que eis aqui um grande texto. Em se tratando de dramaturgia cênica, no entanto, ainda que se trate de um bom espetáculo, o mesmo sucesso não se vê. Dirigido por Rodrigo Portella, “O que você mentir eu acredito” tem ações demais, gritos demais, interpretações demais, cenário demais e tragicidade de menos. Longe de avaliar o espetáculo como uma concepção errada, a expressão “incoerente” serve quando se percebe a existência de certo desacordo entre a força da dramaturgia literária de Barenco (a partir de Caio) e a correria da dramaturgia cênica de Portella. No elenco, porque manifesta positivamente uma construção quase imóvel, Betina Viany tem grande destaque. 

Felipe Barenco “estilhaçou” os contos de Caio Fernando Abreu em busca de frases que funcionassem por si, sem depender propriamente do texto. Em se tratando desse autor, é fácil perceber que o trabalho maior foi o de selecionar as frases do que o de encontra-las. (Como Clarice, Caio brilha nas timelines do Facebook justamente porque suas frases são independentes.) “O que você mentir eu acredito”, por exemplo, é uma frase retirada do conto “Terça gorda” de forma aleatória, arbitrária, selvagem. Veio a frase, mas não seus personagens, não seu contexto, não suas relações. E Barenco age de forma coerente com o próprio Caio que retirava do seu universo repertorial (letras de músicas, quadros, filmes, comerciais de TV, astrologia, bulas de chás e de remédios...) toda a estrutura essencial para construir suas histórias. Daí a força de Caio no texto escrito por Barenco: mesmo que fincados no presente, os personagens sofrem violentamente a pressão do existir nesse tempo que parece não virar passado nunca. 

Terezinha (Betina Viany) mora com seu filho, João Carlos (Joelson Medeiros), desde que esse ficou viúvo. A história começa quando André (Armando Babaioff), o filho de João Carlos, aparece com uma mulher, Malu (Izabella Luz), que teve, no passado, relações com seu pai. Duas questões vêm à superfície: a sexualidade de André e a relação entre João Carlos e Malu. A chegada da moça, assim, modifica o sentido que cada personagem dá a sua vida: André e João Carlos discutem a sua identidade enquanto pai e filho, Malu procura o seu lugar na vida de alguém e Terezinha, acostumada a conviver com a ausência, se vê obrigada a deixar de ser só. A chegada de Malu é um acontecimento fraco e o fato dela ter tido uma relação com o pai e agora estar tendo algo com o filho não é forte o suficiente para fazer com que essas ações digam algo de relevante à contemporaneidade. Dialeticamente, é justamente aí que está o lado positivo: em Caio F., os acontecimentos são meros motivos para as descrições. (Conto se difere de novela, na teoria literária, pela força que sua estrutura manifesta nas articulações em detrimento das ações. Caio é muito melhor contista do que romancista ou dramaturgo.) Ou seja, nesse espetáculo, é muito mais interessante conhecer esses personagens do que exatamente ver o que eles fazem ou assistir ao que acontece com eles. A direção de Rodrigo Portella age na contrapartida infelizmente em quase todo o tempo da fruição, ficando melhor nas cenas finais da peça produzida pela Bloco Pi. 

Medeiros, Babaioff e Luz esforçam-se em mostrar seus personagens sob a direção de Portella. As discussões são em altas vozes, os movimentos são rápidos, tudo é muito aparente. Os melhores momentos são aqueles em que o silêncio paira e a força se dá a ver a partir não das falas ou do como são ditas, mas de suas pausas no tempo. É no intervalo que está o conflito do existir (Caio e Barenco) uma vez que a fala existe quando é dita. Nesse contexto e por esses motivos, Viany, que tem o menor personagem e o menos comprometido com a curva dramática, é quem tem o melhor desempenho. A atriz tem movimentos e falas sutis, posições discretas, ações sempre pontuais positivamente. Vale o destaque para a cena em que pai e filho (Medeiros e Babaioff) se olham nos olhos e se reconhecem um no outro, identificando também suas diferenças. Diferente do teatro convencional, quando mais lento fica o ritmo aqui, melhor a peça fica. Positivamente, assim, a curva felizmente é descendente. 

Apesar dos excessos, o cenário de Edward Monteiro, o figurino de Claudio Tovar e a concepção sonora de Portella e de Babaioff (idealizadores do projeto juntamente com Gustavo Vaz) têm bom uso, completando um quadro valoroso esteticamente e que oferece boas possibilidades para a situação narrativa. O desenho de iluminação de Renato Machado é excelente sobretudo porque preserva o jogo de luz e de sombra que dá profundidade para o texto e faz ver que há algo que é para não ser visto. 

Em sua primeira temporada, no Teatro do Sesi, no centro do Rio de Janeiro, “O que você mentir eu acredito” é uma alternativa inteligente para quem não conhece o universo de Caio Fernando Abreu ou está cansado da imagem que negativamente é dele feita na internet: a de uma literatura sorturna, pessimista ou obscura. Caio F. dá valor para a luz e, por isso, mantém personagens na escuridão. Viva a opção off-line. 

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Ficha técnica:
Texto: Caio Fernando Abreu
Dramaturgia: Felipe Barenco
Direção: Rodrigo Portella
Locução em off: Caco Ciocler
Cenário: Edward Monteiro
Figurino: Claudio Tovar
Iluminação: Renato Machado
Concepção sonora: Rodrigo Portella e Armando Babaioff

Elenco:
Betina Viany
Joelson Medeiros
Armando Babaioff
Izabella Luz

Sound design: Branco Ferreira
Projeto Gráfico: Alexandre de Castro
Fotografia: Silvana Marques
Assistente de fotografia: Dora Reis
Assistente de figurino: Thiago Detofol
Contrarregra: Raphael Alonso
Operador de som: Andrey Brandão
Operador de luz: Romiro Vasques, Kelson Santos e Jorge Madeira
Assessoria de imprensa: Fernanda Lacombe
Captação de apoios: Camila Maia
Produção: Bloco Pi (Liliana Mont Serrat e Damiana Guimarães)
Assistência de produção: Gabriella Villaça, Laís Werneck e Joriam Philipe
Idealização: ABGV Produções Artísticas (Armando Babaioff e Gustavo Vaz)

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