sábado, 8 de junho de 2013

Maravilhoso (RJ)

Paulo Verlings (de vermelho)
em um dos melhores trabalhos
de interpretação vistos em 2013
Foto: Lenise Pinheiro

A identidade do Brasil

“Maravilhoso” é uma excelente novela teatral que ratifica o lugar de destaque de Diogo Liberano como bom dramaturgo entre os jovens dessa cepa que estão chegando. Dirigido por Inez Viana, em seu quarto trabalho nessa função, o espetáculo abriu a programação do Cena Brasil Internacional que acontece até o dia 16 de junho nos teatros do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro. Contando a história de Henrique (Paulo Verlings), a peça tem o mérito maior de estar bem articulada com o texto no desafio de, apesar de optar por um entre os personagens e situá-lo como protagonista, não dispensar todas as narrativas paralelas, cada uma delas sub-protagonizadas pelos outros personagens. Como um parcimonioso vaudeville, Liberano e Viana, além de atores oriundos da Companhia Teatro Independente, Omondé e Teatro Inominável, e da ficha técnica, narram fazendo suaves contornos circulares por todas essas histórias, apontando positivamente para um ápice, antecedido pelos tradicionais pontos de mudança, e culminando em uma apoteose de ímpar valor estético. Em todos os sentidos. “Maravilhoso” é uma das melhores produções surgidas nesse ano de 2013 e que há de fazer merecido sucesso em sua temporada que iniciará na primeira semana de julho próximo no Teatro Glaucio Gil, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. 

Não há comida para o filho pequeno quando Henrique (Verlings) retorna a sua casa depois de enterrar sua mãe. Wanda (Carolina Pismel), sua esposa, está desesperada diante da situação de impotência em que se vê: o filho com fome, o marido ainda desempregado, a dívida na vizinhança crescendo. Em outro núcleo, o jornalista Miguel (Felipe Abib) publica uma reportagem iniciando uma série de denúncias sobre a corrupção no submundo do carnaval carioca. Por isso, recebe a visita de sua ex-esposa Estrela (Débora Lamm), filha de um rico empresário do ramo dos chocolates, que contribui financeiramente para uma das escolas de samba da cidade. A despeito do fim do casamento e do texto publicado no jornal pelo ex-marido, Estrela quer brilhar no alto de um dos carros alegóricos da Marquês de Sapucaí. Para isso, ela terá que ser aprovada pelo bicheiro Dias (Márcio Machado), o carnavalesco da escola em questão. Em um terceiro núcleo, Dias, porém, não está disposto a vender-se aos apelos de Estrela, preocupado com o resultado que o desfile há de lhe trazer na competição que agita o carnaval brasileiro. 

Inicialmente isoladas, as tramas vão se unindo na medida em que vão se anunciando mais profundas, mais cheias de nuances e com estruturas mais fortes. O jogo de emersão e de submersão dos núcleos tem o ritmo impulsionado vagarosamente, fundando com cuidado, passo por passo, cada pilar que sustenta essa dramaturgia (tanto literária quanto cênica). De forma extremamente segura e pontual, os criativos Liberano e Viana narram sem pressa, demonstrando a segurança de saber que têm em mãos um tema que encontra eco nos brasileiros de qualquer canto do país em qualquer época do ano. 

Não está só na condução do ritmo da narrativa, o mérito da direção de Inez Viana. Assistida por Dominique Arantes e por Luis Antônio Fortes, o trabalho de concepção estética da peça se manifesta bem articulado pelo jeito como forma e conteúdo se dão a ver na construção de cada personagem. O jornalista Miguel (Abib) e o carnavalesco Dias (Machado) não são apenas diferentes porque um é homossexual e o outro heterossexual, ou porque um é chefe e o outro é funcionário ou porque um denuncia a corrupção e outro vive dela. Em termos formais, a oposição entre eles está na forma fleumática com que Machado deixa ver o seu Dias e na forma realista com que Abib apresenta o seu Miguel. Por outro lado, mas em mesmo sentido, Wanda e Estrela também se situam em lugares opostos tanto no conteúdo (honestidade, valores religiosos, relação afetiva com seu cônjuge, posicionamento diante da vida, etc) como na forma (Pismel deixa ver uma Wanda nervosa quase exagerada, enquanto Lamm apresenta uma Estrela comedida, quase insegura). No centro, lugar que lhe cabe como protagonista, Henrique (Verlings) passeia por todos esses universos e une os personagens de forma pontual: Wanda e Estrela terão o mesmo fim, Miguel e Dias ver-se-ão como dois lados de uma mesma moeda. Por participar de tantos jogos dramáticos, em contracenas tão diferentes e desafiadoras, e vencer todas elas, é inevitável não destacar Paulo Verlings como o mais excelente entre todos os excelentes trabalhos de interpretação aqui vistos. 

O trabalho de iluminação de Paulo César Medeiros e o de cenário de Luiz Henrique Sá são menos negativos quando a relação palco e plateia é mais distante. Inez Viana situa todos os personagens sobre o palco durante todo o tempo da encenação e, com isso, informa ao público que quer manter suspensas as figuras que não estejam em cena na cena. Nesse sentido, visto de longe, o todo cabe melhor dentro do olhar, sendo aí mais possível identificar o jogo de sombras e de luzes da iluminação (uma metáfora para o ritmo das narrativas nucleares), bem como o andaime que negativamente atende apenas à situação Marquês de Sapucaí (em detrimento do barraco de Henrique e de Wanda, da redação do jornal de Miguel e do luxuoso apartamento de Dias). O figurino de Flávio Souza tem bom resultado em Dias, em Miguel, e na camisa vermelha e nos acessórios de Henrique então apelidado de Maravilhoso. A variação do branco ao cinza amordaça todos os personagens, ficando sem justificativa sobretudo nas roupas de Wanda e de Estrela. O resultado é bonito, mas não tem nada a informar. A trilha sonora de Daniel Belquer é positiva, mas sem destaque. 

Numa época de tão diversos espetáculos e tantos temas a serem e sendo tratados, “Maravilhoso” chega para unir o Brasil como talvez não se vê desde a “Ópera do Malandro”. No proscênio, há um vaso com moedas que pode ser uma referência às esmolas, aos dízimos, às oferendas, à corrupção e à efemeridade dos três dias de carnaval e ao resultado diário do jogo do bicho. Seja qual for ela, é, sem dúvida, uma referência à identidade do Brasil. A segunda edição da Mostra Cena Brasil Internacional começa muito bem. 

*

Ficha técnica:
DRAMATURGIA: Diogo Liberano
DIREÇÃO: Inez Viana
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO: Dominique Arantes e Luis Antonio Fortes
ELENCO: Carolina Pismel, Debora Lamm, Felipe Abib, Márcio Machado e Paulo Verlings
CENÁRIO: Luiz Henrique Sá
DIREÇÃO MUSICAL: Daniel Belquer
FIGURINOS: Flavio Souza
ILUMINAÇÃO: Paulo César Medeiros
PRODUÇÃO: Dani Carvalho
IDEALIZAÇÃO E DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Paulo Verlings

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