Teatro e Clarice Lispector em casamento feliz e duradouro |
Alguns motivos para tanto sucesso
“Simplesmente eu, Clarice Lispector” estreou em 2009, recebendo quatro importantes prêmios naquele ano: Shell, APTR, Revista Contigo e Qualidade Brasil de Melhor Atriz. Interpretado por Beth Goulart, já foi visto por mais de 700 mil pessoas nos últimos quase cinco anos e, por tudo isso, essa análise tem pouco a acrescentar. Nesse sentido, instiga a pretensão das respostas às perguntas: o que o teatro tem a dizer sobre Clarice Lispector, uma das maiores romancistas brasileiras e por quê é tão difícil encontrar outras peças tão boas sobre ela no Brasil?
Ao lado de Nelson Rodrigues e de Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector domina os palcos brasileiros com peças a partir de seus textos (eles ganham de Ariano Suassuana, Gianfresco Guarnieri, Plínio Marcos, Arthur Azevedo, Pedro Bloch, Martins Penna entre outros), apesar dessa última não ter sido jamais uma dramaturga. Por que, entre os escritores nacionais, recaem sobre esses e, mais especificamente, sobre a última, essa preferência dos produtores? E por que a quantidade de produções não é a mesma da qualidade delas, fazendo de “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, infelizmente, uma rara exceção? Teatro e Literatura são duas artes muito diferentes. Enquanto a segunda tem signos próprios (as palavras e suas articulações em frases e em textos), a primeira é feita de tornar seus os signos que são dos outros, amarrando-os em uma estrutura em que um ator interprete um personagem (ou figura) diante de alguém. Lê-se um livro sozinho, mas é raríssimo assistir sozinho a uma peça. Um livro escrito há três mil anos pode ser lido hoje e quem perdeu Dercy Gonçalves em cena nunca mais terá a chance de vê-la novamente. Não é preciso jamais ter conhecido Clarice (1920-1977) para se ler seus livros, mas Beth Goulart precisa estar em nossa frente, em carne e osso, para a vermos interpretar (estamos falando de teatro) sua personagem. Por tudo isso, atualizar uma obra de uma arte para outra não pode desconsiderar as realidades de cada uma, as dificuldades que cada uma oferece para esse processo e a forma como elas podem re-hierarquizar os elementos e construir uma nova estrutura. “Simplesmente eu, Clarice Lispector” tem mérito por, entre tantos motivos, conseguir com extrema habilidade identificar o melhor da literatura dessa autora e atualizar não a autora, nem tampouco uma ou mais de suas obras, mas esse melhor.
Entre tudo o que diferencia a literatura de Clarice Lispector dos demais autores brasileiros, podem-se citar dois elementos: a) a efeito de bolha: seus personagens estão como que dentro de bolhas transparentes, não totalmente alienados do mundo externo, mas tensionados a gastar seus tempos consigo próprios à guisa do mundo lá fora (que reclama suas presenças ou as dispensa); b) o fluxo de consciência, pelo qual o leitor nota o quanto, a partir do momento em que, entretidos consigo mesmo, esses personagens “viajam para dentro de si” como que sem data para o retorno. Voltando para a peça “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, conseguimos identificar com facilidade esses dois elementos no jogo dramático e é aí que está, racionalmente sugerido, o motivo primeiro dos aplausos tão afusivos.
Na cena, dirigida pela própria Beth Goulart, mas supervisionada por Amir Haddad, temos a atriz interpretando a personagem da escritora (além de alguns trechos em que a vemos interpretar alguns personagens de obras específicas de Clarice). O fato dessa escritora realmente ter existido interessa na análise do grau de realismo, na intenção, de certa forma (uma pequena intenção!) documental da produção, mas quase nada além disso. Para o espectador, a relação entre o personagem e o que ela diz fazer ou pensar (e sentir) é muito mais forte. A Clarice de Beth dá depoimentos sobre como escreve e age coerentemente com o que a vemos fazer, agir e escrever em cena. A voz é demorada, as entonações são regulares (monocordes), as sílabas são ditas pausadamente, os movimentos (Marcia Rubin) são articulados de forma que se perceba o planejamento, mas se sinta também a naturalidade.
A construção de um cenário (Ronald Teixeira e Leobruno Gama) circular e onírico (fitas de seda na cor champagne) embasam a sensação de bolha, de universo particular. A opção pelos anos 50 e toda a sua elegância, que reclamam uma estética leve e sem muitos detalhes, na escolha dos móveis favorece o ritmo do fluxo narrativo. Os figurinos (Beth Filipecki), assim como a iluminação (Maneco Quinderé), estão em perfeita sintonia com o cenário, construindo um universo uno, coeso e coerente.
O tema de “Simplesmente eu, Clarice Lispector” não é sua literatura, nem tampouco sua vida enquanto escritora ucraniana naturalizada brasileira. Beth Goulart, ao idealizar o projeto, optou por trazer ao teatro o amor como chave de entrada à arte dessa artista. A trilha sonora, criada por Beth e especialmente comporta por Alfredo Sertã, informa, mais do que apenas estrutura, a relação entre esse tema e outro: deus. A Clarice de Beth vê o amor como em 1Cor 13, 1-13, isto é, sinônimo de caridade, de humanidade, de marca que nos une a todos àqueles que já se foram e ainda virão. Para um espetáculo que faz sucesso há cinco anos, em nosso país, e, certamente, fará por muito mais, nada mais do que significativo.
Porque o teatro pode unir os homens como o amor o faz e porque o silêncio seja o principal barulho ouvido por quem viaja para dentro de si, teatro e Clarice Lispector encontram aqui tão belo e raro casamento.
Ficha técnica:
Texto: Clarice Lispector
Idealização, Direção e Interpretação: Beth Goulart
Supervisão: Amir Haddad
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Diretor de Cena: André Boneco e Guaraci Ribeiro
Trilha sonora: Alfredo Sertã
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenário: Ronald Teixeira e Leobruno FGama
Figurino: Beth Filipecki
Visagismo: Westerleuy Dornellas
Preparação vocal: Rose Gonçalves
Programação visual: João Gabriel Carneiro
Operador de som e vídeo: Paulo Mendes
Operadora de luz / iluminação: Diana Cruz
Camareira: Eliane Silva
Produção Executiva: Manoela Bendia Reis Carvalho
Direção de Produção: Pierina Morais
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