quarta-feira, 8 de maio de 2013

Um inimigo do povo (RJ)

Produção fica em cartaz até o final de maio de 2013
Foto: divulgação

Excelente conjunto de interpretações

“Um inimigo do povo” é a 13a produção do projeto “Teatro na Justiça”, com idealização, curadoria e direção artística de José Henrique e de Sílvia Monte. Com direção de Monte, o espetáculo, que fica em cartaz gratuitamente no Centro Cultural do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, no centro, surge a partir de um texto do autor norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), já infelizmente quase esquecido dos palcos. Com méritos principalmente no conjunto de interpretações e na viabilização dos aspectos visuais, a peça tem muitos méritos e merece ser vista. Destacando os pontos positivos, a análise a seguir há de destacar algumas questões fundamentais que surgem a partir de uma concepção que não aparece de todo clara negativamente.

Ibsen nasce e cresce no século das luzes quando o mundo colhe os frutos plantados por Kant e por Hegel, valorizando a razão sobre as emoções, definindo a verdade, a efetividade da arte além de dar suporte para a Revolução Francesa e seus ideais liberais. Ibsen se dirige à burguesia que nascia naquele contexto histórico de Revolução Industrial, libertação dos escravos, independência das colônias americanas, ampliação do império britânico e enrubescimento do romantismo que começava a dar lugar a um novo gênero na literatura, na música e no teatro. “Um inimigo do povo” foi escrito em 1882 e, naquela ocasião, para muitos, já era considerado um teatro que hoje chamaríamos de reacionário. (“O Capital”, de Marx, é de 1867) Ou seja, já há muito tempo, a contribuição maior de Ibsen às artes é a construção de um drama realista psicológico e suas potencialidades de jogo estético. O tema de suas obras, de um lado acreditar que só uma arte que leve a pensar é verdadeira; e, de outro, fazer crer que a verdade é privilégio para poucos; já não encontra eco em nossa sociedade felizmente.

Nesse sentido, o mérito maior da presença dessa obra cênica na grade de programação do Rio de Janeiro, além do excelente trabalho dos atores, como mais adiante será comentado, é fornecer ao espectador um brilhante jogo dramático, em que o poder passa de mão em mão, gira de um lugar para outro com uma gangorra regular e eterna (Strindberg produzirá obras referências também nesse sentido). Não há, em Ibsen, como também não em Tchekhov, alguém que seja unicamente bom ou unicamente ruim. O realismo surge como uma resposta ao romantismo justamente por dizer “não” ao superficialismo idealista e evidenciar uma sociedade corrompida desde de sua base ao seu topo. Por isso, “Um inimigo do povo”, embora seja uma grande obra, não é a mais relevante do autor norueguês, o que está longe de tirar-lhe o brilho.

A crítica a Ibsen nesse texto é de que ele esconde a personagem chave dessa história  e valoriza demais um herói, o que confunde a sua própria arte. Com destaque exagerado, o Dr. Tomas Stockmann flerta com Peri (José de Alencar), jovem Werther (Goethe) e com tantas outras figuras românticas, incorruptíveis e superficiais. A partir do realismo psicológico, uma obra é vista sempre através dos olhos de alguém (esse gênero inspirará, por isso, nas artes visuais, o impressionismo). O centro da história, assim, é a Sra. Catarina Stockmann, esposa do doutor. No caso, o público há de se identificar com ela, que se localiza nem tanto na defesa de suas conquistas materiais e de sua posição social, nem tanto ao lado do marido na defesa de seus ideais políticos. É nela que está o equilíbrio.

O Dr. Tomas Stockmann é médico de uma pequena cidade cujo prefeito é seu irmão, Peter Stockmann. O lugarejo vive um período de ascensão econômica desde a abertura de um balneário curativo que atrai turistas no verão em busca de um período mais saudável e da possível cura de seus males. O empreendimento, que tem rendido extraordinários lucros, foi fruto de um imenso esforço da população que pagou caro pela sua viabilização. Ocorre que o médico descobre que as águas do balneário estão contaminadas pela rede de esgotos mal construída e, por isso, são impróprias tanto para o banho quanto para beber. Quem vem se curar pode, na verdade, adoecer fatalmente. O arranjamento de Ibsen parte justamente dessa dialética: o que é bom para a cidade é também o mal para ela. Herói e Anti-herói, o doutor e seu irmão, divergem: um defende o fechamento imediato do lugar e o outro mal cogita a possibilidade de viver sem os ganhos que o negócio traz. Entre os dois, a imprensa (Hovstad, dono do jornal), os pequenos (Aslaksen) e os grandes empresários ( Kiil) e também os oficiais (Capitão Horster, pois Ibsen não deixa claro se ele defende o doutor por ideologia ou por interesse em sua filha, a professora Petra Stockmann). A única que convive com o dilema sem apressar-se em resolvê-lo é Catarina Stockmann, que estimula o marido a fazer uma passeata, mas diz que lhe assistirá da janela de sua casa. Nesse contexto, na montagem atual, Catarina (Nedira Campos), em excelente construção, carecia de maior valorização da direção do espetáculo que, talvez concordante demais com o texto, relegue à personagem um lugar muito pequeno. A impressão é de que os ideais não-estéticos, mas os filosóficos e políticos, além do posicionamento artístico de Ibsen, ainda são o que merecem maior valor, o que seria uma desventura.

Com exceção de Diogo Salles, que manifesta uma construção um tanto quanto apática em cena, todos os personagens, das pequenas às grandes aparições, estão não menos que excelentes, de forma que “Um inimigo do povo” se destaca entre os demais espetáculos da cidade pelo brilhante conjunto de elenco. O texto é dito de forma esplêndida, as intenções são bem postas, as pausas acontecem na medida, os gestos são delicados e potentes, a movimentação é inteligente na medida em que concretiza as relações, a estrutura como um todo é simbólica e, por isso, profunda. De pequenos atos como colocar um livro sobre a mesa ou entregar-lhe um chapéu a grandes acontecimentos como um discurso, o quadro criado por Sílvia Monte é bastante valoroso. Para destacar apenas um exemplo de grande trabalho, vale citar Paulo Japyassú (Aslaksen), cujos pequenos movimentos, sutis contornos na entonação oral e clara expressão, indicam em sua pequena participação o que se verá ampliado nos trabalhos de Alexandre Mofati e de Marcello Escorel, o prefeito e o doutor. Eduardo Rieche (Hovstad), Antônio Alves (Kill), Janaína Prado (Petra) e Nedira Campos (Catarina) têm exatamente trabalhos de igual valor resguardando o tamanho de suas aparições na narrativa.

Ronald Teixeira (cenário e figurino) tem positivo trabalho de caracterização, a elegância em detalhes, atendendo ao gênero de forma adequada e, por isso, bem vinda. A trilha sonora de Sílvia Monte foi extraída de Suíte Peer Gynt, de Eward Grieg, músico de nacionalidade norueguesa, reafirmando a sua concepção romântica da história.

“Um inimigo do povo” faz pensar e, por isso, seria, na concepção de Hegel, uma arte de primeira grandeza. Fazer pensar, isto é, estimular a reflexão e o debate sobre a sociedade, aqui, para esta análise, são apenas um dos muitos motivos que fazem dessa obra grandiosa.

*

Ficha técnica:
Autor: Henrik Ibsen
Tradução: Pedro Mantiqueira
Direção e Trilha Sonora: Sílvia Monte
Cenário e Figurino: Ronald Teixeira
Iluminação: José Henrique
Assistente de direção: Luiz Paulo Barreto e Laura Nielsen
Assistente de figurino: Liza Machado
Assistente de cenário: Eloy Machado
Operação de som: Maria Lemos
Operação de luz e contrarregragem: Cristiane Ferreira
Pesquisa, Montagem e Edição da trilha sonora: Arthur Teixeira
Camareira: Selma Freitas
Projeto Gráfico: Sydney Michelette Junior
Equipe de produção: CCPJ-Rio
Assistente de produção: Carolina Ramos e Sara Machado
Produção executiva: Luciana Adão
Direção de produção: Silvia Monte
Criação e Produção: Centro Cultural do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro
Realização: Tribunal de Justiça do Estao do Rio de Janeiro

Elenco (por ordem de entrada):
Nedira Campos
Alexandre Mofati
Eduardo Rieche
Marcello Escorel
Diogo Salles
Janaína Prado
Antônio Alves
Paulo Japyassú

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