Texto de Molière inédito do Brasil surge em espetáculo sem concepção bem definida |
Para aprender o que não fazer
“Apesar do amor” tem dois problemas graves: o péssimo trabalho de interpretação de todos os seus atores e uma direção que não se afirma em uma concepção que seja única. Escrito por Molière (1622-1673), em 1656, o texto é uma cópia de "l’Interesse (La Cupidité)", do italiano Nicolo Secchi. Na comédia clássica, com forte influência da Commedia dell’Arte, dois jovens estão apaixonados pela mesma moça, a filha mais nova de um homem que ficou rico através da tesouro herdado pelo seu primogênito. Ocorre que esse primogênito é, na verdade, uma mulher que está apaixonada por um dos rapazes que cortejam a sua irmã. No desenrolar da trama, o ritmo precisa ser rápido, as palavras bem ditas e os personagens bem construídos. Isso, porém, exige uma opção, uma forma de contar conscientemente escolhida. Ivan Fernandes parece não se decidir entre o melodrama, o vaudeville francês ou o teatro do besteirol. Em cartaz na Sala Maria Clara Machado, na Gávea, eis aí uma comédia que não faz rir, mas pode fazer refletir sobre as consequências negativas de uma obra construída apenas com boas intenções.
A oratória mais próxima do real além da narrativa, mais casual, rotineira ou cotidiana aproximaria a obra do vaudeville francês, mas a falta de ritmo das cenas e de suas articulações afasta a atual montagem de “Apesar do amor" desse gênero. A fidelidade ao texto, em cujo final, há diversos deus ex maquina, em que tudo se resolve com largos exageros e “todos vivem felizes para sempre”, poderia oferecer uma leitura da história a partir dos melodramas cujo auge aconteceu no final do século XVIII e durante o XIX. No entanto, a sensualidade, o uso de expressões cotidianas e a malícia das piadas contemporâneas retiram a peça dirigida por Ivan Fernandes desse ponto de vista definitivamente. O uso de canções atuais e de expressões e pontos de vista do século XXI, bem como um ator representando uma mulher* apontam para uma atualização do gênero besteirol ou do teatro do ridículo. Infelizmente, as marcações firmes, a movimentação rígida e a falta de espontaneidade e de improviso levam a análise para uma concepção que seja contraditória. Ou seja, tudo o que permite à peça ser lida de uma forma também diz algo contra ela, o que reflete ou uma ingenuidade não própria do teatro profissional ou uma falta de reflexão estética sobre a própria obra cênica por parte do diretor, seus produtores e realizadores.
Os atores, todos eles, não mostram um bom trabalho de interpretação. O texto é mal dito do início ao fim: as últimas sílabas não são pronunciadas, as entonações são regulares e monótonas, a dicção inexiste a contento. As expressões faciais e corporais exibem uma falta de consciência corporal, não há uma estrutura que se organize em forma de jogo com ritmo e flexão. Considerando esta ser uma janela destinada ao teatro profissional, as exigências que se fazem ao grupo são mais altas do que o grupo parece estar preparado.
A inclusão de números musicais (a direção musical é de Mario Fontanive Andrade) é um terrível equívoco tendo em vista a falta total de visível preparo do elenco para o canto (a preparação vocal é assinada por Thiago Roseiro): as músicas são interpretadas de forma mal afinada, sem projeção, sem ritmo e com falta de articulação nas cenas. A trilha sonora que acompanha a entrada dos espectadores na sala e a narrativa é confusa, porque arbitrariamente é interpretada ora ao vivo ora gravada, ora como representante de um estilo e de uma época, ora doutros sem claras justificativas.
O cenário de Shizue Morimoto proporciona um bom resultado estético que é mal aproveitado no momento em que um dos personagens parece querer se afogar em uma fonte sem água. Quanto aos figurinos, as roupas têm bom desenho, mas causam um grande estranhamento pela forma bastante adversa com que estão construídos: muitos tecidos diferentes, sapatos de borracha, material estético de origem múltipla. Os adereços carecem de beleza e não agregam nem verdade, nem verossimilhança.
Produzido e realizado pelo Teatro GAS, “Apesar do amor” exibe a importância da pesquisa em artes cênicas, da reflexão sobre a obra, do compromisso com a peça em relação à arte. Peça, aliás, é uma palavra que é sinônimo de Parte, cujo Todo é o idioma, aqui o teatro. A arte de Molière, ainda que ele estivesse vivo, permitiria muitas coisas, mas não todas elas ao mesmo tempo. Daí a importância de uma concepção, agora ausente, que dignifique a montagem e mantenha bem oxigenado o teatro.
* No texto literário de Molière, há uma atriz que interpreta um homem para que seu pai seja digno de uma herança que só recebeu em função do nascimento desse primogênito. No texto dramático de Fernandes, há um ator que interpretada mulher que interpreta um homem, talvez, como uma relação entre a narrativa clássica e o tema da homossexualidade. A opção estética, infelizmente, carece de uma estrutura que lhe dê base, de forma que sua concretude não possa ser lida como apenas algum tipo de apelo ao riso fácil.
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Ficha técnica:
Texto: Molière
Tradução, Adaptação e Direção: Ivan Fernandes
Elenco (em ordem alfabética):
Diogo Borges (Erasmo)
Flavia Spranger (Frosina)
Guga Guimarães (Ascânio)
João Uno (Renatão)
Luciano Martins (Valério)
Maria Clara Nascimento (Marinete)
Raphael Carbone (Alberto)
Ruy Lemos (Polidoro)
Shizue Morimoto (Mascarilho)
Tatiane Albernaz (Lucília)
Musico Convidado: Mario Fontanive Andrade
Direção de Arte: Shizue Morimoto
Direção Musical: Mario Fontanive Andrade
Light Design: João Gaspary
Design de Som: Christian Dias
Preparação de Voz: Thiago Roseiro
Cenário e Figurino: Shizue Morimoto
Preparação de Corpo: Criz Muñoz
Assessoria de Imprensa: Lyvia Rodrigues
Produção Executiva: Paloma Morimoto
Produção e Realização: Teatro GAS
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