terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Cucaracha (RJ)

Foto: divulgação

É imprescindível assistir


            “Cucaracha”: eis aí o teatro contemporâneo para além do que tentou descrever Josette Féral, Jean-Pierre Rygaert, Hans Thiesen Lehmann e tantos outros teóricos. Teatro bom para além do que tentou (e tenta) fazer tantos diretores, querendo se desfazer de um bom texto, de um cenário, iluminação e de figurinos bem investigados, incluindo maus cantores e canções em inglês, projeções no fundo do palco e um pretensioso amontoado de frases sem sentido em cenas não lineares. “Cucaracha”, o novo resultado do “casamento” do dramaturgo Jô Bilac com o diretor Vinícius Arneiro, deixa para trás o adjetivo Excelente e propõe uma obra carioca à altura do mineiro “Amores Surdos”, do Grupo Espanca. A Companhia Teatro Independente e sua equipe orgulham a Cidade Maravilhosa e emocionam o público e a classe teatral. É imprescindível assistir, mas, para isso, é preciso dar-lhe espaço para temporadas longas em salas adequadas. Apenas seis semanas no CCBB e um final de semana na Gamboa são um absurdo para um trabalho dessa qualidade. 

Vilma (Júlia Marini) está em coma há oito anos, desacordada em um quarto de hospital. Mirrage (Carolina Pismel) é a enfermeira que cuida da paciente esquecida pelos familiares, apesar de uma fama que ela ainda preserva. Vê-se o tempo passar no tratamento pelo tamanho da barriga de Mirrage que cresce discretamente ao longo de sua gravidez. Exatamente com a perfeição de “Rebu”, outro espetáculo do mesmo grupo, Bilac e Arneiro unem trabalhos diferentes com coerência e coesão, evidenciando talento, estudo e técnica. O formalismo trash do texto (já visto, por exemplo, em “Os Mamutes”) ganha uma encenação exageradamente hermética no positivíssimo (quem disse que críticos de teatro não podem usar absolutos sintéticos?) trabalho de Pismel. O drama (no sentido de contrário ao gênero cômico), bastante raro na obra de Bilac, encontra cor e vida na sensível construção de Marini. Assim, se na dramaturgia, Jô Bilac intercala momentos para chorar e para rir, Vinícius Arneiro, na direção, trabalha com duas concepções opostas de construção de personagem e, com a habilidade de um diretor experiente, apresenta uma bela obra. 

Entende errado o teatro contemporâneo quem pensa que o que o gênero propõe é o abandono da narrativa. O que o alemão Lehmann diz é que, enquanto o teatro dramático apresenta uma história convergente (os elementos redundam), o teatro pós-dramático narra uma história divergente (é da responsabilidade da fruição e não da obra a articulação dos elementos). Trocando em miúdos, “Cucaracha” conta uma história, mas ninguém da plateia poderá fazer afirmações definitivas sobre ela. As duas personagem realmente conversam ou é a imaginação de uma delas? Nesse caso, de qual delas? E, assim, frase por frase, o espectador está localizado, firme e seguro em um lugar confortável (o bom teatro burguês de Jô Bilac), mas com a tarefa desvelar esse lugar (tirar os véus), reconhecê-lo, redescobri-lo, averiguá-lo e, a partir daí, identificar os seus diferentes níveis de profundidade. 

É inegável que o talento de Pismel se dá melhor a ver na cena em que sua personagem narra o recebimento de mensagem ao celular vindo da esposa de seu amante. Gestos extremamente limpos, medidos, sóbrios explodem em um racionalismo cansado no final da peça. Por outro lado, a delicadeza de Marini se espalha pelo todo da encenação, fazendo perfeito contraponto e equilibrando os pontos divergentes desse quadro. Sem pontos baixos, mas repleto de pontos altos, o ápice pode ser a história da viagem de duas amigas ao espaço, a explosão da Terra (Nem as baratas sobreviveram. Cucaracha é "barata"em espanhol. Viria daí o título?) e a partida para o Sol. 

Em nível sonoro-visual, os elementos estéticos estão orquestrados de forma também excelente. Paulo César de Medeiros, Aurora dos Campos e Thanara Schönardie, na concepção de iluminação, cenário e de figurino, expressam cuidado em detalhes, esmero e delicadeza, promovendo motivos para identificar a profundidade não só no texto e na encenação, mas igualmente no que se vê em cena além das atrizes. Com mesmo valor, a sonoplastia de Daniel Belquer. 

“Cucaracha” me faz de lembrar de um crítico de teatro chamado Décio de Almeida Prado. No fim dos anos 60, ele abandonou o ato de fazer críticas de teatro, dizendo que já não se sentia preparado para entender o tipo de teatro que estavam fazendo naquele momento. Se de um lado, eu me sinto pleno na plateia da Cia Teatro Independente, assistindo ao trabalho de pessoas da mesma geração que a minha, por outro lado, penso que o velho Décio, sem talvez entender nada, também se emocionaria e, como eu, aplaudiria de pé. 


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FICHA TÉCNICA

Texto: Jô Bilac
Direção: Viniciús Arneiro
Elenco: Carolina Pismel e Júlia Marini
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurinos: Thanara Schönardie
Figurinista assistente: Maria Hermeto
Iluminação: Paulo César Medeiros
Música e Som Cênico: Daniel Belquer
Direção de Produção: Liliana Mont Serrat e Damiana Guimarães
Produção Executiva: Dani Carvalho
Realização: Teatro Independente

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