Foto: Guga Melgar
Uma pérola
“Traição”
(Betrayal) foi escrito em 1978, recebendo o prêmio Laurence Olivier de melhor
texto no ano seguinte. Faz parte da última fase do escritor inglês Harold
Pinter (1939-2008), talvez, um dos melhores dramaturgos da segunda metade do
século XX. O tom trágico visto a partir da ótica da contemporaneidade é a marca
da civilidade dos personagens que discutem os seus relacionamentos, os seus
acordos, as suas opiniões em lugares públicos ou privados, mas sempre muito bem
vestidos, tomando bons vinhos e com um humor tácito e ácido. Não é o destino
divino (tragédia grega) que os aprisiona, tão pouco o tempo e a necessidade de
conquistar (Beckett), mas os privilégios da burguesia: casas bem decoradas,
empregos fascinantes, viagens incríveis. Tudo isso é moeda de troca em mesas de
restaurantes quando amigos se encontram, quando mulheres exibem seus maridos,
quando amantes brincam de ser irresponsáveis, não os sendo realmente. Nesse
Pinter, não há loucura, mas uma racionalidade ardilosa que vira doce não pelo
tempo, nem pela circunstância, mas pela força necessária de sua existência. E
é, por representar cenicamente todo esse movimento de tensões tão bem
engendrado que Ary Coslov e Leonardo Franco colecionaram prêmios valiosos pela
sua montagem de “Traição”, em 2008, felizmente (com ênfase no “felizmente”) ainda
em cartaz no Solar de Botafogo nesse outono de 2012. A produção, nos segundo
iniciais, quando ainda ninguém falou, mas a luz já cresce vagarosamente sobre
Emma (Vanessa Lóes), manda uma mensagem clara ao espectador: este vinho é caro
e é para ser degustado com delicadeza, atenção e respeito.
Harold
Pinter está no exato oposto de Woody Allen, outro importante dramaturgo da
segunda metade do século que também discute as relações sob a égide da civilidade
aprisionante. A diferença é que, em Allen, está nas palavras o jogo essencial
da narrativa enquanto, em Pinter, a beleza está no silêncio. Ao dirigir “Traição”,
Coslov não constrói tempos mortos, mas torna as pausas um vibrante vetor onde
as tensões se aguçam e se acalmam, onde o baile realmente acontece. Quando há a
fala, o texto serve como um limiar em que o ritmo ou mudará ou permanecerá o
mesmo, mas marcadamente será sinal de que há algo no passado que não voltará
mais, a última frase não será repetida. Daí que a oratória de Leonardo Franco
(Robert), de Vanessa Lóes (Emma) e de Pablo Padilha (Jerry) não pode ser
considerada apenas pelo seu conceito clássico que previa o ritmo e a perfeição
como as sílabas saem da boca, mas como joga o corpo, os olhares, a respiração
nesse campo de sutil expressão. Mortal para grande parte das peças, o ritmo
lento aqui é uma exigência, assim como um pré-requisito. Franco, Lóes e Padilha
estão excelentes porque cultivam os detalhes de suas representações nesse
clima, ao mesmo tempo, científico e amoroso.
Em
“Traição”, (que virou filme em 1983, sob direção de David Jones) há várias
relações em choque: Robert e Emma são casados. Robert e Jerry são melhores
amigos. Emma e Jerry são amantes. Jerry é casado com outra pessoa. Robert tem
outras amantes. Emma, talvez, também tenha. Personagens ricos e relações em
choque são elementos que constroem um excelente texto. A maestria de Pinter vai
além: a narrativa aqui é reversa. A primeira cena acontece, em 1977, quando tem
fim o relacionamento de Emma e de Jerry. A última cena é bem antes disso. Mais
do que ao leitor do texto, ao espectador da peça está dado o desafio:
reconhecer nos personagens o que eles sabem naquele momento de suas vidas em
relação ao outro, os não-ditos, as estruturas profundas. É Leonardo Franco, na
excelência de seu trabalho como ator, quem providencia os momentos de êxtase: a
ironia, os segredos, a viagem solitária, a opção. Nem vítima, nem algoz, ele é a
versão pós-moderna da Winnie beckettiniana.
Os
signos estético-visuais estão exatamente regidos pela mesma ordem, o que
argumenta em favor do preciosismo dessa montagem. Marcos Flaksman assina com
genialidade o cenário, apresentando no fundo do palco nichos de onde são
retirados os móveis que compõem cada cena. Três questões são fundamentais nessa
rápida análise do cenário: a beleza dos móveis, que são vivos pela gastura do
tempo ou pela sua despretensiosa leveza; o tempo que é destinado em retirá-los
do lugar, colocá-los em cena e, depois, guardá-los novamente em lugar sempre visível;
e, por fim, o fato de poderem ser lidos como gavetas, mais uma expressão cênica
da racionalidade do texto de Pinter: cada coisa tem o seu lugar, cada um é algo
diante do outro, a sociedade se organiza de forma funcional. Os figurinos de Rô
Nascimento e a iluminação de Aurélio de Simoni agem bem em duas frentes:
informar (sabemos o ano, a classe social, onde está o foco) e embalar, propondo
contradições (o casaco pesado que afoga a leveza, a escuridão que ilumina mais
do que a luz – sobretudo em uma das cenas de Franco.). Na trilha sonora,
ouve-se, em sua maioria, Eric Clapton, a voz de uma era, mais uma marca coerente
que ratifica o discurso do momento que não voltará.
Minutos antes da peça começar,
um anúncio sonoro divulga outros espetáculos em cartaz. Um deles, apenas pelo
título, se mostra como uma comédia romântica que trata sobre relacionamentos
entre homem e mulher. Depois de Harold Pinter, a representação teatral desse
tipo de embate ficou mais difícil ser tão nobre, tão perspicaz, tão essencial. Por
tudo o que se disse, “Traição”, o texto e a peça, são pérolas.
*
Ficha técnica:
Texto: Harold Pinter
Tradução: Isio Ghelman
Diretor: Ary Coslov
Assistente de Direção: Marcelo
Aquino
2º Assistente de Direção: Marcela
Andrade
Elenco:
Vanessa Lóes
Pablo Padilha
Leonardo Franco
Cleiton Echeveste
Cenário: Marcos Flaksman
Assistente: Andréa Renck
Estagiária: Priscila Mealli
Cenotécnico: Jober Torres
Figurinos: Rô Nascimento
Assistente: Fernanda Fabrizzi
Iluminação: Aurélio de Simoni
Visagismo: Marina Beltrão
Videomaker: Paulo Severo
Operador de Luz e de Som: Rúbia
dos Reis Vieira
Programação Visual: Conecta
Design e Mayra Pereira
Assessoria de Imprensa: Adriana
Sanglard e George Patiño
Produção Executiva: Maria Maria
Griffith
Direção de Produção: Leonardo
Franco
Realização: Centro Cultural Solar
de Botafogo e Arcos Produções Artísticas
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