quarta-feira, 2 de maio de 2012

Traição (RJ)


Foto: Guga Melgar

Uma pérola

                “Traição” (Betrayal) foi escrito em 1978, recebendo o prêmio Laurence Olivier de melhor texto no ano seguinte. Faz parte da última fase do escritor inglês Harold Pinter (1939-2008), talvez, um dos melhores dramaturgos da segunda metade do século XX. O tom trágico visto a partir da ótica da contemporaneidade é a marca da civilidade dos personagens que discutem os seus relacionamentos, os seus acordos, as suas opiniões em lugares públicos ou privados, mas sempre muito bem vestidos, tomando bons vinhos e com um humor tácito e ácido. Não é o destino divino (tragédia grega) que os aprisiona, tão pouco o tempo e a necessidade de conquistar (Beckett), mas os privilégios da burguesia: casas bem decoradas, empregos fascinantes, viagens incríveis. Tudo isso é moeda de troca em mesas de restaurantes quando amigos se encontram, quando mulheres exibem seus maridos, quando amantes brincam de ser irresponsáveis, não os sendo realmente. Nesse Pinter, não há loucura, mas uma racionalidade ardilosa que vira doce não pelo tempo, nem pela circunstância, mas pela força necessária de sua existência. E é, por representar cenicamente todo esse movimento de tensões tão bem engendrado que Ary Coslov e Leonardo Franco colecionaram prêmios valiosos pela sua montagem de “Traição”, em 2008, felizmente (com ênfase no “felizmente”) ainda em cartaz no Solar de Botafogo nesse outono de 2012. A produção, nos segundo iniciais, quando ainda ninguém falou, mas a luz já cresce vagarosamente sobre Emma (Vanessa Lóes), manda uma mensagem clara ao espectador: este vinho é caro e é para ser degustado com delicadeza, atenção e respeito.
                Harold Pinter está no exato oposto de Woody Allen, outro importante dramaturgo da segunda metade do século que também discute as relações sob a égide da civilidade aprisionante. A diferença é que, em Allen, está nas palavras o jogo essencial da narrativa enquanto, em Pinter, a beleza está no silêncio. Ao dirigir “Traição”, Coslov não constrói tempos mortos, mas torna as pausas um vibrante vetor onde as tensões se aguçam e se acalmam, onde o baile realmente acontece. Quando há a fala, o texto serve como um limiar em que o ritmo ou mudará ou permanecerá o mesmo, mas marcadamente será sinal de que há algo no passado que não voltará mais, a última frase não será repetida. Daí que a oratória de Leonardo Franco (Robert), de Vanessa Lóes (Emma) e de Pablo Padilha (Jerry) não pode ser considerada apenas pelo seu conceito clássico que previa o ritmo e a perfeição como as sílabas saem da boca, mas como joga o corpo, os olhares, a respiração nesse campo de sutil expressão. Mortal para grande parte das peças, o ritmo lento aqui é uma exigência, assim como um pré-requisito. Franco, Lóes e Padilha estão excelentes porque cultivam os detalhes de suas representações nesse clima, ao mesmo tempo, científico e amoroso.
                Em “Traição”, (que virou filme em 1983, sob direção de David Jones) há várias relações em choque: Robert e Emma são casados. Robert e Jerry são melhores amigos. Emma e Jerry são amantes. Jerry é casado com outra pessoa. Robert tem outras amantes. Emma, talvez, também tenha. Personagens ricos e relações em choque são elementos que constroem um excelente texto. A maestria de Pinter vai além: a narrativa aqui é reversa. A primeira cena acontece, em 1977, quando tem fim o relacionamento de Emma e de Jerry. A última cena é bem antes disso. Mais do que ao leitor do texto, ao espectador da peça está dado o desafio: reconhecer nos personagens o que eles sabem naquele momento de suas vidas em relação ao outro, os não-ditos, as estruturas profundas. É Leonardo Franco, na excelência de seu trabalho como ator, quem providencia os momentos de êxtase: a ironia, os segredos, a viagem solitária, a opção. Nem vítima, nem algoz, ele é a versão pós-moderna da Winnie beckettiniana.
                Os signos estético-visuais estão exatamente regidos pela mesma ordem, o que argumenta em favor do preciosismo dessa montagem. Marcos Flaksman assina com genialidade o cenário, apresentando no fundo do palco nichos de onde são retirados os móveis que compõem cada cena. Três questões são fundamentais nessa rápida análise do cenário: a beleza dos móveis, que são vivos pela gastura do tempo ou pela sua despretensiosa leveza; o tempo que é destinado em retirá-los do lugar, colocá-los em cena e, depois, guardá-los novamente em lugar sempre visível; e, por fim, o fato de poderem ser lidos como gavetas, mais uma expressão cênica da racionalidade do texto de Pinter: cada coisa tem o seu lugar, cada um é algo diante do outro, a sociedade se organiza de forma funcional. Os figurinos de Rô Nascimento e a iluminação de Aurélio de Simoni agem bem em duas frentes: informar (sabemos o ano, a classe social, onde está o foco) e embalar, propondo contradições (o casaco pesado que afoga a leveza, a escuridão que ilumina mais do que a luz – sobretudo em uma das cenas de Franco.). Na trilha sonora, ouve-se, em sua maioria, Eric Clapton, a voz de uma era, mais uma marca coerente que ratifica o discurso do momento que não voltará.
                                Minutos antes da peça começar, um anúncio sonoro divulga outros espetáculos em cartaz. Um deles, apenas pelo título, se mostra como uma comédia romântica que trata sobre relacionamentos entre homem e mulher. Depois de Harold Pinter, a representação teatral desse tipo de embate ficou mais difícil ser tão nobre, tão perspicaz, tão essencial. Por tudo o que se disse, “Traição”, o texto e a peça, são pérolas.

*

Ficha técnica:

Texto: Harold Pinter
Tradução: Isio Ghelman
Diretor: Ary Coslov
Assistente de Direção: Marcelo Aquino
2º Assistente de Direção: Marcela Andrade

Elenco:
Vanessa Lóes
Pablo Padilha
Leonardo Franco
Cleiton Echeveste

Cenário: Marcos Flaksman
Assistente: Andréa Renck
Estagiária: Priscila Mealli
Cenotécnico: Jober Torres
Figurinos: Rô Nascimento
Assistente: Fernanda Fabrizzi
Iluminação: Aurélio de Simoni
Visagismo: Marina Beltrão
Videomaker: Paulo Severo
Operador de Luz e de Som: Rúbia dos Reis Vieira
Programação Visual: Conecta Design e Mayra Pereira
Assessoria de Imprensa: Adriana Sanglard e George Patiño
Produção Executiva: Maria Maria Griffith
Direção de Produção: Leonardo Franco
Realização: Centro Cultural Solar de Botafogo e Arcos Produções Artísticas 

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