segunda-feira, 21 de maio de 2012

De verdade (RJ)


Foto: Vicente de Mello

Requintado e incisivo

            O romance “De verdade” (Portraits of a Marriage) foi escrito pelo húngaro Sándor Márai (1900-1989) e publicado pela primeira vez em 1941. Lançado no Brasil em 2008, foi traduzido por Paulo Schiller e é considerado um dos melhores romances do autor. Adaptado para teatro por Isabel Muniz e Susana Schild, a peça “De verdade [ou A Mulher Certa]” apresenta um ponto de vista bastante rico acerca dos relacionamentos, sobretudo pela maneira como, com direção de Marcio Abreu, a dramaturgia cênica conta a história.
O livro se organiza em quatro depoimentos. Aqui valem três: em Budapeste, Ilonka conta a uma amiga a história de seu casamento desfeito, relembrando a inutilidade do esforço para decifrar a intimidade e para conquistar a alma do ex-marido, Peter, encantado, desde a juventude, por uma simples criada, Judit. Depois, em um café, Peter narra a um amigo a sua própria versão sobre a separação, evocando a dor da perda de um filho e reconhecendo o preço pago pela paixão inconfessável por Judit, a empregada que servia a rica mansão de seus pais. Mais de trinta anos depois, na cama de um quarto de hotel em Roma, Judit fala ao novo namorado sobre a infância miserável, sobre os dissabores vividos na casa dos patrões e sobre a união fracassada com Peter, condenada de início pelo abismo existente entre eles.
Em cena, na peça teatral, vemos dois atores, Guilherme Piva e Kika Kalache, a interpretar dois personagens cada um: ele interpreta O Marido e Lazar (o amigo escritor do Marido) e ela interpreta A Primeira Esposa e Judit. Em termos actanciais, nota-se que os personagens ocupam lugares diferenciados na narrativa: O Marido e A Primeira Esposa têm lugares de destaque enquanto os personagens nominados, Lazar e Judit, são coadjuvantes. A sutileza excessiva com que Kalache dá vida às duas figuras apresenta um ponto de vista sobre a história: de um casamento ao outro, O Marido encontra as mesmas dificuldades nos diferentes relacionamentos. A mulher certa não existe. Nesse sentido, o maior mérito da peça “De Verdade”, em termos estéticos, é produzir sentido a partir de significantes tão simples como a escolha do elenco, a tonalidade das interpretações, as nuances discretas do signo cênico. É verdade que tudo poderia ser de outra forma. Interpretados por Piva, O Marido e Lazar estão visivelmente caracterizados de forma diferentes, o que não acontece, como se disse, no trabalho de Kalache. O Marido e A Primeira Esposa poderiam ter nomes na peça como o têm no livro (Peter e Ilonka). Mas eis aí significados que se desdobram: a produção vê os relacionamentos com contornos sutis, com marcas discretas, a partir de meio tons. Nada em cena, nessa cena, é por acaso, o que caracteriza, sem dúvida, uma obra com diferentes níveis de compreensão e, por isso, inteligente.
Os meio tons se vêem desde as interpretações aos signos visuais. Os gestos são moderados, as vozes são macias e quase não há exageros. Pretos, brancos e vermelhos quase não são vistos, mas pairam o cinza e os tons pastéis. Uma saia cheia de rosas e uma cena de sapateado ajudam a construir o clímax melodramático um tanto quanto destoante que passa rápido felizmente. O olhar confessional aproxima, a música interpretada por Antônio Saraiva suavisa, os espelhos devolvem: sem sobressaltos emocionais, o público se sente convidado a se identificar delicadamente.
Com cenário de Fernando Marés de Castilho, figurinos de Cao Albuquerque, iluminação de Nadja Naira e preparação de Márcia Rubin, “De Verdade” toca numa questão fundamental nos relacionamentos de uma forma requintada, mas incisiva. Se buscamos nos outros o que não há em nós, precisaremos de vários outros porque ninguém tem tudo de que precisamos.

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Ficha técnica:
Direção: Márcio Abreu
Elenco: Kika Kalache e Guilherme Piva
Adaptação da obra de Sándor Márai: Isabel Muniz e Susana Schild, com colaboração de Guilherme Piva, Marcio Abreu, Mariana Lima e Kika Kalache
Direção Musical: Antônio Saraiva
Direção de Produção: Francisco França
Figurino: Cao Albuquerque
Preparação Corporal: Marcia Rubin
Preparação Vocal: Babaya
Cenografia de Fernando Marés de Castilho
Luz: Nadja Naira
Fotografia: Vicente de Mello
Design Visual: Sônia Barreto
Visagismo: Ricardo Moreno
Divulgação: Sidmir Sanches e Alan Diniz – Uns Comunicação
Produção Executiva: Alexandre Leandro
Adminstração: Marina Gama – Clan Design
Contrarregra: Roberto Prado
Assistente de Figurino: Kleyton Rigon
Assistente de Luz: Henrique Linhares e Lara Cunha
Operação de som: Anderlon Braga
Realização: Clan Design       
            

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