Foto: Vicente de Mello
Requintado e incisivo
O
romance “De verdade” (Portraits of a Marriage) foi escrito pelo húngaro Sándor
Márai (1900-1989) e publicado pela primeira vez em 1941. Lançado no Brasil em
2008, foi traduzido por Paulo Schiller e é considerado um dos melhores romances
do autor. Adaptado para teatro por Isabel Muniz e Susana Schild, a peça “De
verdade [ou A Mulher Certa]” apresenta um ponto de vista bastante rico acerca dos
relacionamentos, sobretudo pela maneira como, com direção de Marcio Abreu, a dramaturgia
cênica conta a história.
O livro se
organiza em quatro depoimentos. Aqui valem três: em Budapeste, Ilonka conta a
uma amiga a história de seu casamento desfeito, relembrando a inutilidade do
esforço para decifrar a intimidade e para conquistar a alma do ex-marido,
Peter, encantado, desde a juventude, por uma simples criada, Judit. Depois, em um
café, Peter narra a um amigo a sua própria versão sobre a separação, evocando a
dor da perda de um filho e reconhecendo o preço pago pela paixão inconfessável
por Judit, a empregada que servia a rica mansão de seus pais. Mais de trinta
anos depois, na cama de um quarto de hotel em Roma, Judit fala ao novo namorado
sobre a infância miserável, sobre os dissabores vividos na casa dos patrões e
sobre a união fracassada com Peter, condenada de início pelo abismo existente
entre eles.
Em cena, na
peça teatral, vemos dois atores, Guilherme Piva e Kika Kalache, a interpretar
dois personagens cada um: ele interpreta O Marido e Lazar (o amigo escritor do
Marido) e ela interpreta A Primeira Esposa e Judit. Em termos actanciais,
nota-se que os personagens ocupam lugares diferenciados na narrativa: O Marido
e A Primeira Esposa têm lugares de destaque enquanto os personagens nominados,
Lazar e Judit, são coadjuvantes. A sutileza excessiva com que Kalache dá vida às
duas figuras apresenta um ponto de vista sobre a história: de um casamento ao
outro, O Marido encontra as mesmas dificuldades nos diferentes relacionamentos.
A mulher certa não existe. Nesse sentido, o maior mérito da peça “De Verdade”,
em termos estéticos, é produzir sentido a partir de significantes tão simples como
a escolha do elenco, a tonalidade das interpretações, as nuances discretas do
signo cênico. É verdade que tudo poderia ser de outra forma. Interpretados por
Piva, O Marido e Lazar estão visivelmente caracterizados de forma diferentes, o
que não acontece, como se disse, no trabalho de Kalache. O Marido e A Primeira
Esposa poderiam ter nomes na peça como o têm no livro (Peter e Ilonka). Mas eis
aí significados que se desdobram: a produção vê os relacionamentos com
contornos sutis, com marcas discretas, a partir de meio tons. Nada em cena,
nessa cena, é por acaso, o que caracteriza, sem dúvida, uma obra com diferentes
níveis de compreensão e, por isso, inteligente.
Os meio tons
se vêem desde as interpretações aos signos visuais. Os gestos são moderados, as
vozes são macias e quase não há exageros. Pretos, brancos e vermelhos quase não
são vistos, mas pairam o cinza e os tons pastéis. Uma saia cheia de rosas e uma
cena de sapateado ajudam a construir o clímax melodramático um tanto quanto
destoante que passa rápido felizmente. O olhar confessional aproxima, a música
interpretada por Antônio Saraiva suavisa, os espelhos devolvem: sem
sobressaltos emocionais, o público se sente convidado a se identificar
delicadamente.
Com cenário de
Fernando Marés de Castilho, figurinos de Cao Albuquerque ,
iluminação de Nadja Naira e preparação de Márcia Rubin, “De Verdade” toca numa
questão fundamental nos relacionamentos de uma forma requintada, mas incisiva. Se
buscamos nos outros o que não há em nós, precisaremos de vários outros porque
ninguém tem tudo de que precisamos.
*
Ficha técnica:
Direção: Márcio
Abreu
Elenco: Kika
Kalache e Guilherme Piva
Adaptação da
obra de Sándor Márai: Isabel Muniz e Susana Schild, com colaboração de
Guilherme Piva, Marcio Abreu, Mariana Lima e Kika Kalache
Direção
Musical: Antônio Saraiva
Direção de
Produção: Francisco França
Figurino: Cao Albuquerque
Preparação
Corporal: Marcia Rubin
Preparação
Vocal: Babaya
Cenografia de
Fernando Marés de Castilho
Luz: Nadja
Naira
Fotografia:
Vicente de Mello
Design Visual:
Sônia Barreto
Visagismo:
Ricardo Moreno
Divulgação:
Sidmir Sanches e Alan Diniz – Uns Comunicação
Produção
Executiva: Alexandre Leandro
Adminstração:
Marina Gama – Clan Design
Contrarregra:
Roberto Prado
Assistente de
Figurino: Kleyton Rigon
Assistente de
Luz: Henrique Linhares e Lara Cunha
Operação de
som: Anderlon Braga
Realização:
Clan Design
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