sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Narci$u (RJ)

Foto: Lorena Zschaber
Curta: @criticateatral
João Freire

João Freire


Ótimo monólogo explora bem seus recursos estéticos

O ótimo “Narci$u” estreou na 10ª FESTU – Festival de Teatro Universitário no início de dezembro de 2020 ao lado de outros 19 espetáculos. Eles venceram uma seleção inicial que contava com cem peças inscritas de vários lugares do país. O monólogo tem positiva direção de Filipe Gimenez, esse que assina também um excelente desenho de luz. João Freire defende ótima dramaturgia e elogiosa interpretação em espetáculo provocativo que vale a pena ser assistido por causa das reflexões que ele motiva e dos méritos estéticos que ele traz. 

A dramaturgia se revela por jogos de palavras obnubilados de onde sai aos poucos uma figura esvoaçante que, em breve, irá partir. Há ali o prazer e a tragédia do momento único: as palavras se jogam em abismos no corpo andrógino de João Freire, que está assustadoramente sexy tal como pede o papel. 

O mito de Narciso é uma entre 245 histórias antigas que aparece em “Metamorfoses” de Ovídio (43 aec. – 17 dec.). O personagem seria um deus de impressionante beleza sobre quem Tirésias, em seu nascimento, teria vaticinado: “viverá enquanto não se conhecer”. Adulto, enxergara sua própria imagem nas águas límpidas de um rio e, apaixonado por si próprio, morreu afogado. O tema ainda hoje é muito popular e inspira múltiplas reflexões. Uma entre as melhores delas é o livro “O retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde (1854-1900). Nessa história, um jovem e belíssimo homem, ao ver-se retratado em um quadro, troca com a figura a velhice eminente pela beleza eterna até seu trágico fim. “Narci$u”, no entanto, não tem tempo para aprofundar-se nas possibilidades dessas obras citadas. 

Esse esquete tem apenas dez minutos e sua dramaturgia tem o mérito de sintetizar um personagem original interessante com boa curva dramática em pontual exploração do tema. A peça conta a história de um homem tão quente quanto frio, que é capaz de levar homens e mulheres ao fogo da paixão sem se queimar, e que sofre por isso. O personagem-título dá nome a uma persona que teria nascido anos antes como resultado de uma traição traumática. Tendo tido um desfile de moda internacional financiado por seu amante, o protagonista descobre, ao regressar ao Brasil, que está sendo traído. E é aí que começam suas histórias sexuais, essas que vão sendo contadas em forma e em conteúdo dramático com eficaz complexidade. 

Os méritos da dramaturgia de Freire podem ser divididos, assim, em duas partes: a beleza das construções frasais em ritmo pulsante e o conteúdo visto a partir da complexidade: ao mesmo tempo que vemos o protagonista machucar, nós o vemos ser machucado pelas situações nas quais ele próprio se envolve. É aqui, nessa segunda, que está a principal referência ao mito conforme a narrativa ovidiana. O ritmo do desvelo expressa o ato sexual com os avanços, as pausas, os devaneios, a força e o romance. Isso tudo desenvolve, em metáfora, o tema explorado. 

Sob direção de Filipe Gimenez, a interpretação de João Freire surge como outro elemento bastante positivo: o corpo em diagonal, o aproveitamento de espaços e níveis, a exploração do quadro cênico – no caso audiovisual em tempos de pandemia. Há aqui recursos numerosos e bem investigados que surgem positivamente como talentos jovens que renovam o espírito da classe, atendendo às motivações do FESTU e do ofício teatral como um todo. 

Sobre Gimenez, vale ainda destacar a qualidade do desenho de luz de “Narci$u”. Há ondas iluminadas bastante específicas no espetáculo: o proscênio (que surge no close), uma zona escura intermediária, o fundo iluminado e um infinito banhado em vermelho e negro. A movimentação do ator por esses limites colabora positivamente para a desenvolver da rápida narrativa, sendo um elemento pictórico bastante bem utilizado e que merece aplausos. 

Por fim, “Narci$u” surpreende na programação desse final de 2020, surgindo como uma produção meritosa no uso pleno e valoroso da grande maioria dos seus aspectos. 

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Ficha técnica:
Texto, Figurino e Interpretação: João Freire
Direção e Iluminação: Filipe Gimenez

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