sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Lima entre nós: estudo compartilhado – a atualidade de Lima Barreto (RJ)

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Foto: divulgação
Leandro Santanna

                           
Ótimo espetáculo encerra a programação do 13º Festival Niterói Em Cena

Com um título longo, “Lima entre nós: estudo compartilhado – a atualidade de Lima Barreto” encerra bem a 13ª edição do Festival Nacional de Teatro Niterói em Cena, em apresentação presencial, no Teatro Popular Oscar Niemeyer, no centro da Cidade Sorriso. O monólogo tem inúmeros méritos, mas o cenário e a interpretação de Leandro Santanna estão no topo da lista das maiores qualidades. Com uma dramaturgia complexa assinada por Santanna e por Márcia do Valle, essa que assina também a direção, a montagem da Companhia Teatro Queimados Encena merece ser reassistido principalmente após o debate, esse que traz mais luz sobre Lima Barreto que a própria peça que o antecede. Foi uma delícia estar de volta à plateia de um teatro, sem dúvida, um dos lugares mais seguros para se estar entre os espaços públicos abertos legalmente na pandemia. Está de parabéns a coordenação do Festival e a direção do Teatro Popular pela oportunidade mas sobretudo pelo exímio cumprimento de todas as regras de higienização, essas executadas com rigor em todos os aspectos. 

Lima Barreto: o autor e a obra 
Antes de tratar com propriedade dos muitos elogios que “Lima entre nós” apresenta, vamos começar pela única questão mais nevrálgica do projeto. A dramaturgia de Leandro Santanna e Márcia do Valle tem uma avaliação paradoxal, isto é, pelos motivos que é positiva é também negativa. A questão é a seguinte: Santanna e Valle decidiram por compor o roteiro da peça apenas por trechos escritos pessoalmente por Lima Barreto, escritor carioca que viveu entre 1881 e 1922 (e que fez, vejam só!, todo o ginásio no Liceu de Niterói no finalzinho do século XIX). Essa opção dos criadores é instigante, porque apresenta um belíssimo uso da linguagem e interessante reflexão sobre a burocracia do serviço público e arte literária, pontos esses destrinchados por algum brasileiro que viveu no início do século XX. Por outro lado, quem for embora para casa assim que a peça termina sai sem saber praticamente qualquer coisa sobre quem é esse brasileiro: o personagem-título - Afonso Henriques de Lima Barreto. O público do 13º Festival do Niterói Em Cena, felizmente, foi brindado com um delicioso debate pós-apresentação. Foi nessa oportunidade que Santanna apresentou o personagem, que contextualizou a dramaturgia, que situou as ideias do espetáculo, permitindo melhor acessibilidade à obra. A impressão que se tem é a de que o espetáculo precisa mais do debate do que o debate da peça, o que, em termos estéticos, é tão peculiar quando entender que um quadro ou um poema precisa de explicação para ser apreciado. Então, em resumo, “Lima entre nós” (sem o debate) tem o mérito de instigar a audiência aos temas e à leitura ao mesmo tempo que tem o desmérito de apresentar muito pouco (ou quase nada) sobre o autor homenageado. 

Sobre Lima Barreto, vale dizer que, de fato, ele é um autor muito pouco estudado na história da nossa literatura nacional. Vale lembrar que, infelizmente, a disciplina de Literatura, hoje em dia, praticamente já deixou de existir na grade curricular das escolas no país desde que deixou de haver uma prova sobre ela no ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Antes ainda, os escritores Simbolistas, Parnasianos e Pré-modernistas ficavam “afundados” em um cronograma limitado, de um lado, por Aluísio Azevedo e Machado de Assis no Realismo, e, de outro, por Mário de Andrade e Oswald de Andrade no Modernismo. Em outras palavras, Alphonsus de Guimaraens, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Lima Barreto e Monteiro Lobato sempre acabaram sendo desprivilegiados. Lima Barreto é mais conhecido pela versão cinematográfica de seu romance “Triste fim de Policarpo Quaresma” (dirigido por Paulo Thiago e lançado em 1988, com Paulo José como personagem-título) e pela novela da TV Globo “Fera Ferida”, veiculada no horário das 20h entre 1993 e 1994 escrita por Aguinaldo Silva. Toda ela foi baseada na obra de Lima de Barreto: os romances “Recordações de Isaías Caminha”, “ Vida e Morte de J.M. Gonzaga de Sá”, “Triste fim de Policarpo Quaresma”, “Clara dos Anjos”, “O homem que falava javanês e outros contos” (em especial “O Numo e a Ninfa”, “Nova Califórnia” e “Os bruzundangas”. A antropóloga Lilia Schwarcz é uma pesquisadora que tem colaborado muito com a memória desse grande autor e vale a pena conhecê-la. 

Neto de escravizados, Lima Barreto teve uma infância relativamente privilegiada no Império do Brasil pela proximidade entre sua família e o senador Liberal Visconde de Ouro Preto, esse que acabou sendo o último Presidente do Conselho de Ministros do Imperador na Monarquia. Diferente do que todos normalmente aprendemos na escola, na manhã do dia 15 de novembro de 1889, no Campo de Santana, não houve a Proclamação da República, mas a prisão do Visconde de Ouro Preto e a deposição de todo o seu gabinete em um golpe dos militares e do Partido Conservador contra o Gabinete Liberal. A República, de fato, só foi anunciada na madrugada do dia 15 para 16 (sexta para sábado) quando circulava a fofoca de que o Senador Silveira Martins – inimigo pessoal do Marechal Deodoro da Fonseca – estava a caminho da corte tendo sido convocado pelo Imperador Dom Pedro II para assumir o posto de Ouro Preto, padrinho de Lima Barreto, o que era mentira. Com a mudança em 360º na política do país, o jovem Lima Barreto foi diretamente atingido. Toda a sua literatura foi marcada pela crítica à burocracia, ao positivismo, à república e sobretudo ao preconceito racial e social e à soberba literária dos Parnasianos. O estilo literário de Lima Barreto é diametralmente oposto ao de Olavo Bilac e ao de todos os poetas famosos da época, esses que estavam em moda no Brasil que celebrava a Belle Époque. Ou seja, era uma obra deslocada no tempo que não conseguiu esperar por um novo ciclo. Muito moço, Lima Barreto foi fatalmente acometido por problemas mentais e pelo vício da bebida, tendo falecido no ano da Semana de Arte Moderna, essa que enterrou o Parnasianismo e celebrou o jeito de escrever simples, fluente e direto que era praticado pelo escritor carioca homenageado no espetáculo “Lima entre nós”. 

Como já foi dito, a dramaturgia de “Lima entre nós: estudo compartilhado – a atualidade de Lima Barreto” optou por não trazer qualquer uma dessas questões contextuais e preferiu se focar na voz do escritor por meio dos textos de seus diários e de sua obra ficcional. A escolha é interessante: há mérito em se aproximar da obra sem nada conhecer sobre seu autor. No entanto, enquanto homenagem ou celebração, fica a desejar. Como já foi dito, é um paradoxo: bom e ruim ao mesmo tempo, mas aplaudível sempre! 

O espetáculo: os demais elementos da encenação 
Aparte as considerações sobre a dramaturgia, só há elogios aos outros elementos da encenação. Leandro Santanna apresenta brilhante trabalho interpretativo, degustando e fazendo degustar cada palavra nas excelentes construções frasais de Lima Barreto. Com calma, ele dá espaço para o público sorver um estilo composto há um século como se tivesse sido escrito ontem, fazendo vibrar a atualidade daquela literatura e daqueles posicionamentos. Sob direção de Márcia do Valle, seus movimentos pelo palco no modo como ele se utiliza de diversos recursos expressivos e níveis profundos de abordagem na caixa preta do palco é bastante elogiável. É tocante notar a maneira sensível como o espetáculo tem várias nuances bem aproveitadas: a crítica, o drama, a loucura, a lucidez, a reflexão filosófica, a paixão, as tentações, os desafios, as iluminações, as sombras, os impulsos e os limites. Em menos de uma hora de apresentação, o público está diante de uma belíssima interpretação e de uma direção inteligente. 

Quanto aos elementos estéticos outros, a iluminação de Paulo César de Medeiros dispõe diversos trechos da dramaturgia, organizando os momentos e auxiliando positivamente a audiência a acompanhar a evolução do roteiro assim como colabora na construção de quadros cheios de beleza. Destaca-se também que muitos pontos de luz oriundam de garrafas de cachaça suspensas no alto do palco, o que talvez seja uma metáfora para a iluminação da inconsciência trazida pela embriaguez. Na trilha sonora do Maestro Palhares, há também muitos méritos, mas talvez haja um excelente destaque para a inclusão, em momento bastante significativo, de um trecho da ópera “Tannhäuser” (1845), de Richard Wagner. Em primeiro lugar, porque Wagner foi um compositor romântico, e Lima Barreto viveu - de certa forma - sob a égide de uma melancólica saudade da monarquia que ele pouco ou quase nada conhecera. Em segundo lugar, porque “Tannhäuser” termina com o personagem-título chorando tardiamente sob o túmulo da mulher amada e aqueles que conhecem tanto a literatura de Lima Barreto como a referida ópera de Wagner podem chorar pela demora do Modernismo ter chegado em relação ao falecimento do escritor carioca. 

Para além de tudo, a direção de arte assinada Marcelo Viégas traz um cenário simples e potente, composto essencialmente por um baú cheio de facetas e muitos papeis cujos tons variam em nuances de amarelo. O figurino de Rosekeli Alves concorda com o cenário, em valorosa articulação que privilegia a simplicidade e, em contraste, a elegância do personagem: duas facetas em luta dentro de um homem hiper talentoso que viveu em uma época cheia de contradições políticas, artísticas e sociais. 

“Lima entre nós: estudo compartilhado – a atualidade de Lima Barreto” é um espetáculo marcante porque motiva a plateia a conhecer mais sobre o autor, sobre a época em que ele viveu e, mais ainda, a ir ao teatro. Parabéns! Evoé! Saravá! 

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Ficha Técnica
Texto: Lima Barreto
Roteiro: Leandro Santanna e Márcia do Valle
Direção: Márcia do Valle
Elenco: Leandro Santanna
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Preparação corporal: Laura Sammy
Direção de arte e Produção executiva: Marcelo Viégas
Fotografia: Daniel Barboza
Filmagem: Bruno Rodrigues
Figurino: Rosekeli Alves
Trilha sonora: Maestro Marcelo Palhares
Fotos: Daniel Barboza
Arte final: Beá Meira
Mídias sociais: Leticia de Moraes
Assessoria de imprensa: Tassia Di Carvalho
Realização/Produção: Companhia Teatral Queimados Encena

Classificação Indicativa: 12 anos​
Duração: 55 min.
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