quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Borboletas de sol de asas magoadas (RS)

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Foto: divulgação

Evelyn Ligocki

Ótimo monólogo sobre o universo trans completa 15 anos de sucesso em Porto Alegre


O belíssimo monólogo “Borboletas de sol de asas magoadas” completou 15 anos de sucesso. A peça é o mais antigo espetáculo teatral em cartaz no país com a temática da visibilidade trans. Idealizado, concebido e realizado por Evelyn Ligocki desde 2002, o projeto permanece vivo felizmente sem ter sucumbido no país que é líder no mundo em assassinatos de transexuais. Vale a pena ver e rever a bela montagem em oportunidades como a que lhe ofereceu o 19o Porto Verão Alegre.

O encontro com Betty
Em “Borboletas de sol de asas magoadas”, há um investimento da dramaturgia no aspecto íntimo e particular das travestis. Ao longo da peça, o público está sendo recebido por Betty em sua casa, como se estivesse lá para entrevistá-la e para conhecer o seu dia a dia. Então, o mundo que se vê é aquele visto pela protagonista em sua individualidade. O resultado é a criação de uma relação próxima entre o personagem e a audiência, o que humaniza o debate surgido naturalmente ao longo dos sessenta minutos de apresentação.

Para além da força da questão política e social dos transexuais, “Borboletas” tem o mérito de chegar ao ponto do humano. De início, o público está diante de uma travesti falante, contadora de causos, que impõe a sua cultura, os seus valores, o seu jeito e parece se orgulhar de ser protagonista em um mundo notoriamente diverso do de sua plateia. Ela explica sobre como se veste, como se maquia, conta sobre o que faz quando está em casa sozinha, sobre o contato com suas amigas e descreve expressões idiomáticas usadas nas conversas entre seus pares. No entanto, é muito bonito reparar como o texto vai para outros lugares além desse mais superficial.

O fim da peça, depois de um acontecimento marcante em sua dramaturgia, o público está diante de uma Betty diferente. Ou melhor, está-se de modo diferente diante da mesma Betty. Quem assistir ao espetáculo reconhecerá um trecho em que vida humana da protagonista corre risco. A representação desse momento é o que modifica o olhar da audiência a respeito da personagem. E é aí que a humanidade da plateia se encontra com a humanidade da anfitriã. O encontro celebra a mudança de uma perspectiva: Betty não é um ser mais diferente do que todos os diferentes com os quais nós nos encontramos. Ela é só um outro ser com sonhos, desejos, frustrações e planos similares aos de qualquer outra pessoa.

O espetáculo foi desenvolvido como projeto de conclusão do curso de graduação em Interpretação Teatral no Departamento de Artes Dramáticas da UFRGS em 2002. E estreou conferindo à Evelyn Ligocki o troféu de Atriz Revelação no Prêmio Açorianos de Teatro Gaúcho. Esse se trata da mais alta honraria do Rio Grande do Sul aos atores. Em 2006, em São Paulo, Ligocki foi indicado ao Prêmio Qualidade Brasil na categoria de Melhor Atriz por sua interpretação de Betty.

Atualmente, “Borboletas de sol de asas magoadas” está junto de outras produções que também tratam sobre o universo trans. Vale citar produções de destaque nacionais como “BR-Trans”, dirigido por Jezebel de Carli e com Silvero Pereira no elenco; “Rio Diversidade”, idealizado por Márcia Zanelatto; e “Gisberta”, com direção de Renato Carrera e interpretação de Luis Lobianco. Todas essas e outras produções dão sua colaboração para a mudança das terríveis estatísticas às quais nosso país está envolvido em relação ao assassinato de transexuais. A partir de dados da respeitável Trangender Europe, que mapeia a situação no mundo, o Brasil é o pais em que há mais crimes motivados por homofobia no planeta. Em 2017, 171 transexuais foram assassinados aqui (no México, foram 56; nos Estados Unidos, 25; no mundo, 325). É um dado alarmante e triste que se espera modificar.

Excelente ritmo
Do ponto de vista de sua encenação, o espetáculo é ótimo. Ligocki rapidamente conquista a plateia com seu enorme carisma. Usando os tempos de maneira excelente, ela conduz a narrativa explorando diversos tipos de temporalidade: de trechos mais informativos, a situações mais líricas, da comédia ao drama, de uma movimentação silenciosa a quadros mais expressivos. A peça termina deixando um positivo desejo por mais, o que demonstra o excelente ritmo da montagem cuja colaboração artística é assinada por Celina Alcântara.

São excelentes as participações dos demais elementos estéticos da peça. O figurino se transforma de maneira simples mas incrível, sendo ele próprio conteúdo e metáfora para o que está tratando. A peruca loira de má qualidade, a maquiagem exagerada, os acessórios visivelmente baratos demonstram um empenho da produção em fazer ver que capricho não tem nada a ver com posses. Valoriza-se, nesse sentido, a sede de Betty pelo bonito e pelo sofisticado ainda que haja em suas vidas muita dificuldade financeira. O cenário age no mesmo sentido, reforçando a feminilidade e a ingenuidade não como oposições à força ou à esperteza, mas como marcas conjuntas que atuam em universo complexo.

Através da trilha sonora, vê-se romantismo, mas também uma certa vocação à felicidade. Em alguns momentos, quando a rua invade a casa de Betty, a sonoplastia projeta o mundo em seu redor. O desenho de luz, em auxílio a isso, cria espaços diferentes sobre o palco, contribuindo para a evolução do drama. Por tudo, também se observam os méritos da peça. No entanto, é na atuação de Evelyn Ligocki que está o ponto alto da produção.

Brava Evelyn Ligocki
Evelyn Ligocki faz Betty brilhar. Em primeiro lugar, há um excelente casamento entre corpo, expressões faciais e uso da voz. A personagem, que é brutalmente diferente da atriz, surge explorada por um enorme universo de detalhes, expondo, de um lado, o fulgurante repertório expressivo de Ligocki, e de outro, plena disposição dela em fazer da personagem um campo onde o encontro entre o público e a temática pode se dar. Além disso, destaca-se o modo excelente como a intérprete domina o tempo, as marcas e narrativa ainda mantendo o frescor no mónologo que se apresenta há tanto tempo. Se em outras produções longevas é comum sentir o mofo do cansaço, não é o que se vê aqui felizmente. Mas do que tudo há a defesa da encenadora no seu empreendimento estético. Evelyn acompanha todos os processos ligados à peça: da produção à realização, da criação à viabilização. Trata-se de um grande trabalho.

“Borboletas de sol de asas magoadas” é uma montagem brasileira necessária sócia e esteticamente. Vale a pena assistir e aplaudir muitas vezes. Brava!

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Ficha técnica:
Texto, direção e atuação: Evelyn Ligocki
Colaboração artística: Celina Alcântara

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