quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Os dois gêmeos venezianos (RS)

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Foto: divulgação

Henrique Gonçalves


Henrique Gonçalves brilha em ótima comédia em cartaz

A deliciosa comédia “Os dois gêmeos venezianos” chega ao seu terceiro no verão porto-alegrense. Trata-se de uma ótima montagem da Trupe Giramundo do texto escrito pelo italiano Carlo Goldoni (1707-1793) que foi traduzido, adaptado e dirigido por Suzi Martinez. A história, baseada em uma narrativa milenar, narra as confusões que surgem quando dois gêmeos se reencontram na mesma pequena cidade do interior da Itália em algum lugar da idade moderna. No elenco, composto por Guilherme Ferrêra, Marlise Damin, Lutti Pereira, Suzi Martinez, Luciano Pieper, Juliana Barros e Henrique Gonçalves, se destacam bastante positivamente os quatro últimos, esses ótimos trabalhos. A produção recebeu duas indicações ao Prêmio Açorianos de Teatro Gaúcho em 2016 e mais o troféu de Melhor Ator Coadjuvante para Gonçalves. Na passagem do espetáculo pela 19a edição do Festival Porto Verão Alegre, a temporada encerra hoje, às 21h, no belíssimo teatro do Centro Histórico-Cultural Santa Casa, no centro de Porto Alegre. Vale a pena correr para assistir (ou aguardar nova temporada).

Sobre a dramaturgia
Carlo Goldoni escreveu a peça “I due gemelli veneziani” ao longo de 1747 e ela estreou no ano seguinte. O teatro italiano do seu tempo já tinha influenciado sobremaneira o teatro espanhol a ponto de fazê-lo florescer como a máxima expressão artística do século de ouro. Nas últimas décadas, nos reinados de Luís XIV e XV, ele se impunha com força igualmente atroz na capital francesa. O mérito de Goldoni, que acabou chamando para si, em seus últimos anos, a graça da monarquia de Versalhes, foi ter unido os temas populares a uma organização métrica e dramatúrgica neoclássica. Em suas peças, não há a grossa esculhambação tradicional da commedia dell arte, nem tampouco a rigidez acadêmica das comédias francesas pós Molière.

Em “Os dois gêmeos venezianos”, a narrativa se passa em uma pequena cidade da região do Reino da Lombardia, norte do que hoje conhecemos como Itália. Nela moram o Doutor em Direito (chamado pelo codinome Dottore) e sua filha Rosaura, essa última aguardando a chegada de Tonino, seu noivo, um jovem e rico rapaz que vem de Bérgamo. Colombina, antiga ama de Rosaura, espera também o seu noivo, o Arlechim, que é criado de Tonino, para também se casarem. As confusões começam com a misteriosa chegada de Fabrício, vindo de Veneza, em busca de um tal irmão gêmeo seu que ele nunca viu. Atrás de Fabrício, aportam o amigo Florindo e Beatriz, noiva do primeiro. A semelhança entre Tonino e Fabrício causa uma série de desenganos por parte dos personagens: noivas, criados e amigos se confundem com ambos em uma sucessão de mal entendidos engraçados.

Dentre as bastante prováveis fontes para a peça de Goldoni, está o célebre “Os menecmos”, comédia de Plauto (254 – 184 a.C.) escrita mais ou menos no início do século II antes de Cristo. Em nosso tempo, e em Porto Alegre, é muito conhecida uma outra versão dessa mesma narrativa escrita por William Shakespeare (1564-1616). “A comédia dos erros”, de 1594, é defendida pela Cia. Stravaganza, há dez anos, na capital gaúcha em excelente montagem dirigida por Adriane Mottola. Há ainda que citar o musical americano “The boys from Syracuse”, de 1938, com músicas de Richard Rodgers e letras de Lorenz Hart, que teve, em 2002, uma péssima nova versão na Broadway.

Méritos e problemas na direção de Suzi Martinez
A montagem assinada por Suzi Martinez conquista seus méritos com esforço. Apesar da excelente tradução e adaptação, de figurinos, cenários, luz e de trilha sonora estarem positivamente abrigados por um conceito estético bastante bem definido e ainda que haja algumas interpretações realmente destacáveis, a peça demora para engrenar. É possível que uma das justificativas para isso seja a falta de uma melhor coesão na direção. Vale refletir o que se quer dizer com isso.

Falta farsa. E, em lugar dela, ao longo de quase toda a encenação, se percebe um empenho do elenco em psicologizar os personagens, isto é, entendê-los e defendê-los como se tratasse de uma peça romântica. Com raras exceções, não há crítica, mas uma sólida quarta parede que separa o público da peça apesar de falas superficialmente dirigidas à plateia. Há que se destacar momentos em que isso convenientemente se quebra. Por exemplo, lá pelas tantas, ao (querer) elogiar Beatriz, Tonino compara a posição dos olhos dela com a dos olhos de uma galinha. Diante da bizarrice da fala, o ator observa: “Que bobagem!”. Nesse momento, o ator se conecta com o público, ambos diante do personagem. E o peso da dramaturgia, assim, lindamente se desfaz. Em outro trecho, o Capitão, ao investigar o roubo de uma caixa de joias, cita a corrupção brasileira e o público cai na gargalhada. Trata-se da celebração do fato de que estamos assistindo a uma peça de teatro e não à vida real.

Esse teatro-dentro-do-teatro, que ficou célebre nas montagens de Molière cem anos antes de Goldoni, fica claro na decisão de colocar atores que não estão em cena sentados próximos ao palco, entre o tablado e a plateia. Nas cortes onde os espetáculos aconteciam, os nobres também sentavam-se ali para serem vistos ao mesmo tempo em que se assistia à peça. Na direção de Suzi Martinez, a Trupe Giramundo, que abre a peça anunciando que “vai contar uma história” e a encerra dizendo que “contou uma história”, em alguns momentos, investe nessa estética, mas, em outros, encerra-se solenemente em si mesma, evidenciando uma incoerência prejudicial para o melhor desempenho do ritmo.

O brilho de Henrique Gonçalves
Elenco
Sobre a interpretação dos atores, vale destacar outros momentos positivos em que a engrenagem de “Os gêmeos venezianos” parece correr solta e feliz. É vibrante o modo como Suzi Martinez (Capitão) e Juliana Barros (Beatriz) se divertem na viabilização de seus personagens. Ambas apresentam um roll magnífico de expressões corporais e vocais que transformam o palco em um verdadeiro duelo de ótimos trabalhos. Algo similar a isso, apresenta Luciano Pieper (Tonino), de quem se destaca, além do belo trabalho corporal, uma excelente dicção.

Guilherme Ferrêra (Doutor) e Lutti Pereira (Pancrácio) apresentam bons trabalhos, mas muito presos atrás da dramaturgia (mais do que atrás das máscaras que seus personagens vestem). Marlise Damin (Rosaura) também se apresenta assim, mas parece melhorar com o desafio de contracenar com Juliana Barros ao final da sessão. É incompreensível a adoção de Ferrêra e de Pieper por registros realistas na apresentação de Florindo e de Fabrício.

De todo o saldo mais positivo de “Os gêmeos venezianos”, vale conhecer de perto o excelente trabalho de Henrique Gonçalves, como o Arlechim. Trata-se de um dos personagens mais difíceis do repertório dramático universal pelas altas exigências físicas que ele impõe ao seu intérprete. Gonçalves vence todas elas com galhardia, exibindo uma disponibilidade artística de primeira grandeza em todos os aspectos. É bom testemunhar novas estrelas nascendo.

Uma deliciosa comédia para toda a família
“Os dois gêmeos venezianos” se organiza ainda a partir dos valorosos figurinos de Suzi Martinez e da ambiência sonora de Álvaro Rosacosta e de Simone Rasslan. Em ambos os entrechos, se percebe uma qualificada pesquisa voltada para o maior sucesso do espetáculo. De um lado, vê-se um guarda-roupa bem cuidado nos mínimos detalhes; de outro, uma sonoridade que prepara e exulta o rito de apresentação. O cenário de Marco Fronckowiak e a luz de Anilton Souza e de Maurício Moura também oferecem ao todo bons valores, trazendo também mais elogios à produção.

Ao lado de 77 espetáculos que compõem a 19a edição do Porto Verão Alegre, a deliciosa comédia “Os gêmeos venezianos” é uma ótima pedida para quem quer oferecer a si, à sua família e aos seus amigos entretenimento de qualidade. Aplausos!

*

FICHA TÉCNICA
Autor: Carlo Goldoni
Tradução e adaptação: Suzi Martinez

Elenco:
Henrique Gonçalves: Arlequim
Guilherme Ferrêra: Doutor, Florindo
Juliana Barros: Colombina, Beatriz
Marlise Damin: Rosaura
Luciano Pieper: Os gêmeos Fabrício e Tonino
Lutti Pereira: Pancrácio
Suzi Martinez: Capitão


Cena sonora e música original: Álvaro Rosacosta
Preparação musical e trilha pesquisada: Simone Rasslan
Cenografia: Marco Fronckowiak
Luz: Anilton Souza e Maurício Moura
Máscaras: concepção e confecção: Israel Rosa
Figurinos: Suzi Martinez
Design Gráfico: GiannaSoccol
Preparação commediadell’arte: Fábio Cuelli
Coreografias: SayonaraSosa
Concepção visual: MainQuest

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