sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Bailei na curva (RS)

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Foto: divulgação

Leonardo Barison e Ana Paula Schneider

A peça mais importante do teatro sul-brasileiro

De que se tem notícia, “Bailei na curva” é a peça mais longeva do teatro brasileiro em sua história. Há quase trinta e cinco anos, gerações distintas conseguem assistir à mesma montagem do espetáculo: outros atores, mas a marcação continua igual temporada após temporada. Dirigidos por Júlio Conte, nesse verão de 2018, integram o elenco: Guilherme Barcelos, Saulo Aquino, Eduardo Mendonça, Manoela Wunderlich, Ana Paula Schneider e, em ótimos trabalhos, Laura Leão e Catharina Conte com o excelente Leonardo Barison. Continua valendo a pena assistir a esse clássico: o texto continua vibrante, a linguagem segue em uso pleno, o todo ainda une milhares de pessoas desconhecidas em torno de uma mesma forte energia. Ao lado de outras 77 produções, essa está em cartaz na 19a edição do Festival Porto Verão Alegre, se apresentando no Teatro da AMRIGS até o próximo dia 21 de janeiro.

Um clássico do teatro brasileiro
A narrativa acompanha a vida de um grupo de personagens que, por ocasião do destino, se encontrou entre o início dos anos 60 até trinta anos mais tarde. Na infância, Ruth, Ana, Paulo, Caco e os irmãos Gabriela e Pedro foram vizinhos de bairro, dividindo as brincadeiras de rua, as idas ao cinema e os conflitos com os pais apesar de pertencerem, cada um, a famílias muito diferentes. Ao longo de toda a primeira parte da peça, “Bailei na curva” apresenta um panorama histórico, cultural e social da capital gaúcha por meio de seus acontecimentos políticos, de seu linguajar e de seus hábitos. Eis então que, por consequência do golpe militar de 1964, a amizade entre aquelas crianças se transforma. Há uns que se mudam, outros cujos pais desaparecem.

De modo bastante poético, identificam-se as proximidades e os abismos que o tempo (?) faz emergir entre as personagens ao longo dos anos 70. De um lado, os protagonistas estão diante dos imperativos sexuais da idade. De outro, a situação política do Brasil segue atingindo e definindo suas individualidades: há quem entra para a luta armada, há quem se aliena do processo, há quem se coloca no centro, mas não menos suscetível.

Nos últimos quadros, a força do tempo está consolidada e seu poder é sentido tanto pelo nascimento dos filhos como por lances da memória. Dona Elvira, mãe de Pedro e de Gabriela, se recusa a falar sobre o desaparecimento do marido e do filho nos porões da ditadura, Caco diz não se lembrar do jovem que um dia ele foi. Esse conjunto de ausências - sejam físicas, sejam emotivas - imprime a necessidade do grito e a importância de “não se perder por aí”, que se canta no final da peça.

“Bailei na curva” estreou em 1o de outubro de 1983 e o que os personagens diziam no final da peça era o dia a dia daqueles que assistiam à montagem. O texto, aliás, foi escrito a partir de improvisações dos atores sobre seus passados (e seus presentes) naquele então. Além de Júlio Conte, que assina o acabamento final, os atores Cláudia Accurso, Flávio Bicca Rocha, Hermes Mancilha (1959-1996), Lúcia Serpa, Márcia do Canto e Regina Goulart são corresponsáveis nominados pela dramaturgia. Na versão atual, imagens desses e de outros atores que viveram os personagens em cena aparecem através de vídeo na cena final. Nesse sentido, pode-se entender que, ao longo do tempo, a peça assumiu seu papel de voz imemorial, de testemunho histórico que sobrevive ao presente, levando ao futuro o seu ponto de vista dos fatos.

Júlio Conte, Márcia do Canto, Flávio Bicca Rocha,
Regina Goulart, Cláudia Accurso e Hermes Mancilha
O espetáculo foi o segundo trabalho do Grupo Do Jeito Que Dá, sucedendo “Não pensa muito que dói”, de 1982, que havia ganho o Troféu Açorianos de Melhor Diretor (Júlio Conte) e de Melhor Espetáculo do ano. Em cartaz inicialmente no Teatro do Ipê, a montagem recebeu o Troféu Açorianos na categoria Prêmio Especial do Júri e permaneceu se apresentando até dezembro de 1985 em um roteiro de 51 cidades. Do elenco, além dos realizadores, também participaram Cláudio Cruz, Fernando Severino (? – 1996), Marcos Breda, Marley Danckwardt, Miriam Tessler e Neneca Cavalheiro. Lançado em 1984, o livro com o texto da peça foi o segundo mais vendido na Feira Literária do ano. A canção “Horizontes”, que Flávio Bicca Rocha compôs especialmente para a peça, foi gravada, nesse ano, por Eliane Geissler. Ela se tornou, junto da peça, um hit da redemocratização.

Nove anos depois da última apresentação dessa temporada, “Bailei na Curva” estreou novamente com o mesmo elenco em comemoração aos 10 anos de reabertura do Theatro São Pedro e permaneceu em cartaz até 1997. Em janeiro de 2000, em nova montagem, Tiago Conte, Cíntia Ferrer, João Walker, Patrícia Mendes, Ju Brondani, Julinho Andrade, Tiago Leal, Miila Dezet substituíram o elenco anterior. De lá para cá, com outras entradas e saídas no coletivo, somam-se um total de quase vinte em meio aos trinta e cinco anos que a peça vai comemorar na próxima primavera.

Alterações (muito!) sutis na abordagem dos personagens, no contorno interno de algumas frases, mantiveram o texto com uma sonoridade tão viva quanto o próprio teatro e sempre conectado ao seu tempo. O tempo, aliás, é o grande protagonista de “Bailei na curva”, pois é ele quem obriga as crianças a envelhecerem, os jovens a se posicionarem e os velhos a se lembrarem do passado. A todo mundo, cabe reconhecer a importância da conexão. Diferente de todas as artes, só no teatro o artista e a obra são fenômenos inseparáveis, pois um texto sobre uma peça não é uma peça, nem tampouco um vídeo, uma fotografia, uma lembrança. E é nesse sentido que a manutenção de “Bailei na curva” é tão importante. Trata-se de uma instituição, de um edifício, de um patrimônio da cultura local que a inventa, a identifica, a reflete, a celebra e de que se deve orgulhar e aplaudir.

O excelente rimo dessa versão de “Bailei na curva”
A respeito da versão em cartaz no 19o Porto Verão Alegre, deve-se dizer que a direção de Júlio Conte segue imprimindo no trabalho o excelente ritmo das atualizações anteriores. As cenas rápidas do período de contextualização na primeira parte da história são substituídas por quadros mais longos no centro que evoluem a um retorno da matriz inicial. O palco praticamente vazio composto apenas por cadeiras e sem qualquer outro objeto e agora auxiliado por imagens reproduzidas em vídeo no fundo constituem um interesse da montagem em se viabilizar a partir do nada que é tudo em seu ponto de vista etéreo. Todos os personagens deixam de existir quando desaparecem, permanecendo apenas na mesma memória que a encenação celebra. Tudo segue sendo coerente, delicado e belo em sua potência e, mais ainda, em sua alta habilidade em conectar pessoas diferentes, de gerações e registros diversos em torno de uma mesma recordação identitária que é tão inventada quanto documental, tão pública quanto individual, específica quanto geral.

Ainda refletindo sobre o ritmo, vale destacar uma questão importante da direção de Júlio Conte em “Balei na curva”. Há aqui uma prática que é pouco comum no teatro em geral e que só correntemente se dá em atualizações do gênero comédia musical americana (o que a gente conhece por grandes musicais ao estilo Broadway). É a quase eliminação das particularidades. Normalmente, as montagens teatrais são baseadas na criação dos atores para seus papeis e cumprem um período limitado de apresentações. Somente grandes musicais feitos a partir de desafios do mercado internacional impõem um registro padrão a todas as atualizações através do tempo e do espaço. Precisa-se citar, a guisa de exemplo, “O fantasma da ópera”, que está em cartaz há 31 anos em diversas línguas, ou “Os miseráveis”, há quase 38, no mundo inteiro. O público japonês, argentino, americano ou brasileiro não vai ao teatro para ver esse ou aquele intérprete, mas para ouvir as canções ganharem corpo ao vivo e para se aproximar de Christine ou de Jean Valjean. O mesmo acontece com “Bailei na curva”. Seja lá quem interpretar Pedro, Ruth ou Torugo, para citar alguns, vai ter que sucumbir à estética acumulada pelas décadas de que uma montagem atual não pode se apartar. Do ponto de vista teórico, isso é muito interessante. E, na ordem da gestão da produção, também.

Dito isso, pode-se chegar à observação do trabalho do elenco nessa versão. Identifica-se, com pesar, os problemas mais e menos sérios no uso da voz por boa parte do elenco. A fluência do texto, no império do ritmo veloz, exige que todas as palavras sejam ditas com muita clareza mesmo para um público que conheça bem o texto. O “embolar” das sílabas nos finais das frases, a voz baixa e o desafino atroz comprometem o todo. E, felizmente, isso não se vê em Ana Paula Schneider (quando usa o falsete na interpretação de Luciana ainda criança), em Catharina Conte, em Laura Leão e em Leonardo Barison (esses três últimos em todos os seus personagens). Nesses, há que se elogiar a ótima contribuição que oferecem. Quanto ao corpo, vê-se excelente trabalho nesses citados, mas também em Manoela Wunderlich e em Saulo Aquino, todos apresentando excelente repertório expressivo no gesto e na face.

Leonardo Barison, Manoela Wunderlich, Laura Leão,
Eduardo Mendonça e Ana Paula Schneider
(crédito: Jéssica Barbosa)
Não se pode deixar de valorizar o brilho da célebre “Cena do carro”, talvez um dos melhores quadros do teatro brasileiro contemporâneo. A aventura sexual de Torugo (Eduardo Mendonça), de Pau’ Renato (Barison) ao lado de Vera (Wunderlich) e de Ruth (Leão) com a pequena Luciana (Schneider) em seu encalço surge nessa montagem de modo tão brilhante como sempre. É sem dúvida um dos pontos altos da peça. Por outro lado, em outros momentos, sente-se a perda de um Pedro (Guilherme Barcelos) mais expressivo e de um Paulo (Saulo Aquino) mais presente que garantam melhor equilíbrio com as figuras fortes de Ana (Wunderlich), Gabriela (Catharina Conte), Ruth (Leão) e Caco (Barison).

Leonardo Barison (Caco e Pau’ Renato) apresenta excelente trabalho. Sob todos os aspectos, o ator movimenta a narrativa por meio de uma profícua pesquisa cujo resultado se evidencia em seu corpo, em suas feições e em sua voz em cena. A cada acontecimento, o intérprete responde no melhor tempo, subvertendo ou ratificando a ordem apoiado nas mais adequadas decisões dos entrechos. É um trabalho digno de prêmios, não há dúvidas.

Ponto obrigatório no teatro brasileiro
Por fim, deve-se dizer que essa versão de “Bailei na curva” permanece apresentando excelente contribuição nos elementos sonoro-visuais como figurino (produção de Patsy Cecato), iluminação (Júlio Conte e Prego Pereira), vídeos (Roberto Scherer e Júlio Conte) e como trilha sonora (Flávio Bicca Rocha e Júlio Conte). Todos esses recursos acumulados de versões anteriores ainda seguem íntegros em seus méritos. O guarda-roupa recupera modelos clássicos em cortes bem feitos e acabamento bem cuidado, formando um quadro tão interessante quanto belo. O mesmo se pode dizer da trilha sonora, que reúne clássicos musicais bastante úteis ao organizar da narrativa. Quanto ao desenho de luz, os focos bem marcados definem os ambientes com potência relevante além de enquadrar a abordagem com enorme beleza. Os vídeos, em especial na passagem dos anos 60 para 70, valorizam o espetáculo como um todo positivamente.

“Bailei na curva” é ponto obrigatório na história do teatro brasileiro do qual todos os gaúchos devem se orgulhar e com frequência aplaudir novamente. Que tenha o espetáculo e seus méritos atuais contínua vida longa!

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Ficha Técnica

ROTEIRO & DIREÇÃO
Autoria
Julio Conte, Márcia do Canto, Regina Goularth, Lúcia Serpa, Hermes Mancilha, Flávio Bica, Cláudia Acursso, Cláudio Cruz

ELENCO
Ana Paula Schneider, Catharina Conte, Eduardo Mendonça, Guilherme Barcelos, Laura Leão, Leonardo Barison, Manoela Wunderlich e Saulo Aquino

MÚSICA-TEMA
Flávio Bicca Rocha

TRILHA SONORA
Flávio Bicca Rocha e Júlio Conte

EDIÇÃO DE VÍDEOS
Roberto Scherer e Júlio Conte

ILUMINAÇÃO
Júlio Conte e Prego Pereira

PRODUÇÃO DE FIGURINOS
Patsy Cecato

DIREÇÃO
Júlio Conte

PRODUÇÃO
Cômica

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