segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

As trevas ridículas (RS)

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Foto: Júlio Appel

Frederico Vittola


Distante da crítica, montagem não resolve os problemas do texto

“As trevas ridículas”, do alemão Wolfram Lotz, é uma peça radiofônica que, para sua atualização ao palco, parece oferecer mais desafios do que privilégios ao encenador. Pelo menos, é o que que se pode acreditar depois de se ter lido a tradução do texto por Luciana Dabdab Waquil e de se ter assistido à montagem do Grupo Jogo de Experimentação Cênica dirigida por Alexandre Dill. Na narrativa, enquanto executa uma missão militar no Afeganistão, um sargento se encontra com vários personagens muito diferentes e todos eles contam as suas histórias. A galeria de figuras lado a lado compõe um panorama que defende, de forma negativa, um ponto de vista do autor sobre o multiculturalismo vigente mesmo em lugares muito afastados. Com Vicente Vargas, Gustavo Susin, Guilherme Conrad, Lucas Prado e Frederico Vittola no elenco, há bons destaques nos trabalhos desses dois últimos. A peça fez duas apresentações no Instituto Goethe por ocasião do 19o Porto Verão Alegre.

Os cinco desafios não vencidos de “As trevas ridículas”
Lançada em 2014, a peça “Die Lächerliche Finsternis”, do jovem alemão Wolfram Lotz, foi escrita para ser veiculada através do rádio. No entanto, popularizaram-se pelo mundo várias montagens teatrais baseadas nesse roteiro desde então. No Brasil, o projeto TRANSIT, idealizado pelo Goethe Institut de Porto Alegre, promoveu duas versões cênicas da obra dirigidas por dois diretores diferentes: Alexandre Dill e Camilo de Lélis. O espetáculo do segundo se chamou “Nas sombras do coração” e a produção de Dill recebeu o título de “As trevas ridículas”. As duas versões estrearam na capital gaúcha em maio de 2017 por ocasião do 12o Festival Palco Giratório promovido pelo SESC.

De início, o roteiro original apresenta, pelo menos, cinco desafios ao encenador que quiser adaptá-lo para o palco. Essa análise, que se debruça sobre o espetáculo do Grupo Jogo, pretende refletir sobre a dificuldade desses desafios no sentido de argumentar em favor dos possíveis méritos da referida produção, mas também dos problemas que ela não conseguiu resolver. 

O primeiro problema que a obra original empurra para o encenador é a situação narrativa. De maneira muito esquisita, o texto de Lotz apresenta duas frentes diegéticas, mas as desenvolve de modo muito diverso. De um lado, em um tribunal em Hamburgo, no norte da Alemanha, há um pirata somali chamado Ultimo Michel Pussi se defendendo contra a acusação de ter atacado o navio de carga alemão MS Taipan. O personagem, ao confessar-se culpado, utiliza como argumento de sua defesa a tese de que, em seu país, as coisas são diferentes. E narra que foi jogado ao crime por causa da pesca agressiva e do lixo tóxico do oeste dito civilizado. O episódio ficcional é claramente baseado no sequestro real de um navio de mesmo nome. Em 5 de abril de 2010, enquanto navegava pela Costa da Somália no Oceano Índico, a embarcação MS Taipan foi invadida por dez piratas somali que acabaram presos e condenados. Pussi pede a compreensão do juiz no alívio de sua pena, narrando que o grande navio havia destroçado seu pequeno barco de pesca, esse que tinha sido comprado com muito esforço por ele e por seu amigo Tofdau, que acabou desaparecendo no mar depois do incidente.

Do outro lado da narrativa, numa segunda frente diegética do roteiro, há a viagem do sargento alemão Oliver Pellner e de seu imediato Stefan Dorsch pelo interior do Afeganistão. Eles estão em uma missão secreta atrás do tenente Karl Deutinger, que matou seus companheiros. E, enquanto adentram o país, encontram-se com um grupo de nativos reunidos sob o comando da ONU. Eles colhem produtos que são vendidos a grandes empresas de telefonia celular e são organizados por um oficial chamado Lodetti, que a Pellner narra seu problema com drogas e com mulheres quando era uma criança de cinco anos. Há também o encontro com o mercador Stojkovic, que vende produtos diversos no interior da floresta e que diz morar em um barco depois que sua casa e família foram incendiadas pela OTAN. Há ainda o Reverendo Carter, que transforma mulheres muçulmanas em mulheres do mundo: livres das burcas e dadas a um comportamento sexual mais livre. O trajeto termina com uma espécie de encontro com Deutinger. Quem for ver a peça (ou ler o texto) vai entender melhor como isso se deu.

Cabe ao encenador dar conta do modo como esses dois blocos narrativos interagem entre si. No texto, a história de Pussi é contada em primeira pessoa em um monólogo único longuíssimo que abre a dramaturgia. Já a história de Pellner é totalmente dividida em vinte e cinco cenas nas quais atuam o narrador, mas também os personagens envolvidos. Nesses termos formais, fica fácil de se perder na confusão, pois não se entende como a história saiu de um tribunal na Alemanha para o meio de uma enorme floresta no Afeganistão. E, da mesma forma, é difícil reconhecer algum laço entre o drama do pirata e as aventuras do sargento. Desde aqui, se pode dizer que o grande navio de carga estraçalhando o pequeno e frágil barco de pesca, na imagem inicial, é uma metáfora para a dominação das grandes potências mundiais sobre as culturas menos bélicas no resto da peça. E também que a invasão de hábitos, de valores e de objetos do mundo industrializado nas sociedades mais rurais pode ser uma consequência desse estraçalhamento. Essas duas questões são a crítica de Lotz ao imperialismo e ao colonialismo, que o encenador precisa organizar e que a direção de Dill não deixou ver em sua maior potência.

Em “As trevas ridículas”, a direção leva, ao texto confuso, um enorme número de ações que deixa a compreensão ainda mais difícil para o espectador. O monólogo inicial de Pussi, que talvez seria mais compreensível através de uma prosódia mais calma e didática, surge cheio de grandes movimentações com as quais o público tem que lidar em acréscimo a todo o contexto narrativo que o personagem traz. O peso com que Dill parece tratar toda a questão de abertura prossegue nas cenas de Pellner até esbarrar nas figuras de Lodetti, de Stojkovic e de Carter. Nesses personagens, o tom ridículo parece carregar a crítica de Lotz através de outros braços, de mãos mais cômicas, mas igualmente efetivas. O problema é a volta da seriedade. O ritmo cai novamente e o que era confuso mas divertido, agora novamente é confuso e chato.

O segundo problema do roteiro radiofônico de Lotz para quem for transformá-lo em dramaturgia é os diferentes interlocutores. O pirata Pussi está falando com o juiz que irá provavelmente condená-lo à prisão. Mas com quem o sargento Pellner fala? Nesse termo, pode-se dividir o discurso de toda a segunda parte da peça em dois grandes blocos que se alternam. No primeiro, Pellner descreve a alguém a sua viagem após o fim dela. No segundo, Pellner está na viagem, vivendo os momentos descritos no bloco anterior. Essa alternância reivindica da encenação maior cuidado. Em “As trevas ridículas”, talvez por limitações nos trabalhos de interpretação, mas também porque vários atores têm personagens duplicados, a complexa teia discursiva da peça não colabora bem com o todo. Se o segundo bloco está bem resolvido, o primeiro parece longe de também estar.

Continuando próximo ao segundo problema, mas já em outro, há a questão do tempo. Presente, passado e concomitância são elementos que, fossem melhores trabalhados, auxiliariam na transformação de “As trevas ridículas” do roteiro para rádio à dramaturgia para teatro. Todos os personagens, em algum momento, trazem um relato do passado para o presente de suas presenças. Esse vai e vem, que dificulta a aproximação da audiência à peça, precisaria ser melhor resolvido. Na direção de Alexandre Dill, de modo negativo, tudo parece estar no mesmo ambiente. E esse debate deve fazer o Brasil se lembrar dos vários planos de “Vestido de noiva”, clássico de Nelson Rodrigues cuja estreia marca o início da história do teatro brasileiro.

O quarto problema tem a ver com a função no todo das narrativas integrantes. Em “As trevas ridículas”, há uma galeria de pequenas histórias que não modificam a trama principal, mas, para quem assiste, isso só vai ficar claro no fim. Desse modo, a maneira como a direção de Dill trata essas histórias menores prejudica a apreensão do todo: no espetáculo, tudo parece ter a mesma importância. Tratam-se, porém, de recursos de linguagem que argumentam em favor da crítica de Lotz e nada mais. A trama principal do texto é a busca de Pellner por Deutinger, essa que o crítico Renato Mendonça, de maneira brilhante, associou a “O Mágico de Oz” em sua avaliação.

Por fim, há o lugar simbólico da escuridão em “As trevas ridículas”. No rádio, só há a voz dos atores e tudo o mais é escuridão. A mata para Pellner é, a princípio, um mundo desconhecido. O futuro na prisão que Pussi vislumbra é também as trevas, assim como o paradeiro de Tofdau e de Deutinger que no nada habitam. A direção de Alexandre Dill, porém, elege um outro símbolo para a adaptação do texto para palco. Originalmente, ela escolhe um enorme contêiner que domina o palco e traz ainda mais complicações para a narrativa, pesando a encenação.

Lucas Prado e Frederico Vittola em boas interpretações
Devem-se considerar, ainda, as marcas espetaculares que vão além da relação entre a dramaturgia e o roteiro na qual ela se baseou. De um modo geral, do ponto de vista das interpretações, pode-se dizer que os cinco atores têm conceitos vacilantes sobre o que defendem em cena. Em alguns momentos, há uma seriedade própria de peça realista-documental, como o monólogo de abertura ou como os diálogos entre Pellner e Dorsch. Em outros, porém, há uma brincadeira que leva ao ridículo, como a participação do Reverendo e a história de Stojkovic. Essa dubiedade expressa uma concepção não tão bem amarrada que, se tem méritos no interior dos entrechos, perde-os na relação entre eles na estrutura da peça.

A movimentação, além disso, sofre com um palco tomado por um enorme contêiner e com uma divisão espacial pouco clara no desenvolvimento da narrativa. A falta de melhor fluidez na articulação de todos os elementos prejudica a peça, trazendo um negativo desconforto para o público que lê a abordagem com monotonia.

Gustavo Susin (O pirata Pussi) usa bem o corpo no que diz respeito à movimentação e ao gestual, mas apresenta dicção com muitos problemas. É difícil entender o que o ator fala e isso é mais problemático ainda quando se trata de um monólogo longo e importante como o dele nessa peça. Guilherme Conrad (Stojkovic e Deutinger) traz uma presença cênica relativamente apagada e apoiada unicamente no visagismo de seu personagem. Vicente Vargas não desenvolve seu sorumbático Dorsch, descansando em uma visão apática dele que o texto permite. Lucas Prado investe com fluidez na caricatura ao construir o Reverendo Carter e o comandante Lodetti. Nessas duas colaborações, o ator tira boas vantagens dessa possibilidade, viabilizando enorme carisma por meio de textos bem ditos e pausas bastante qualificadas no desenho das entonações.

Frederico Vittola, com coragem e técnica bem empregadas, apresenta um Sargento Pellner que se serve bem de seu porte físico imponente e de seu ótimo uso da voz. Seu protagonista encontra nele boa disponibilidade para movimentar a narrativa por meio de uma interpretação íntegra, segura e firme em suas concepções.

Ótimo figurino de Manu Menezes
O figurino de Manu Menezes é o elemento mais bem usado em “As trevas ridículas”. Com potência, nessa questão, está na montagem a crítica ao imperialismo por meio do uso de um guarda-roupa bastante urbano e popular mesmo no meio de uma mata longínqua. Veem-se ótimas escolhas e a organização de um visagismo que oferece bons artifícios às interpretações e ao espetáculo como um todo. O cenário de Reynaldo Netto também aparece através de elementos bem cuidados. Dentro da proposta já julgada, vale dizer que sua aparência oferece à estética do todo boas contribuições, ainda que traga problemas à concepção. O desenho de luz de Lucca Simas se perde em meio aos outros elementos, ficando alijado de contribuir de modo mais qualificado infelizmente. A direção musical de Bibiana Petek, com destaque para a interpretação de “The lion sleeps tonight” pelo elenco ao vivo em cena, é outro ponto que merece ser valorizado na análise. Em todas as suas contribuições, sobretudo naquelas em que brinca com os sons oferecendo imagens que se contrapõem ao que é citado no texto, traz valores bastante especiais.

O desejo da direção de falar para além do muito que já é dito no texto original talvez tenha impedido a montagem do Grupo Jogo de responder com mais qualidade aos problemas do roteiro de Wolfram Lotz. Considera-se, assim, que “As trevas ridículas” permanece, nessa adaptação, distante do seu tema principal: a crítica ao imperialismo.

*

Ficha técnica:
Texto: Wolfram Lotz
Direção: Alexandre Dill.
Intérpretes: Vicente Vargas, Guilherme Conrad, Lucas Prado, Frederico Vittola e Gutavo Susin
Direção Musical: Bibiana Petek
Preparação Vocal: Lígia Motta.
Desenho de Luz: Lucca Simas
Figurino: Manu Menezes
Cenografia: Reynaldo Netto
Cenotécnico: Rodrigo Shalako
Colaboração: Jezebel de Carli
Arte Gráfica: Késsio Guerreiro.
Fotos e Vídeos: Pedro Mendes.
Assessoria de Textos: Giorgia Fiorini
Produção: GrupoJogo de experimentação Cênica

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