quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Apareceu a Margarida (RS)

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Foto: divulgação

Renato Del Campão


Há dez anos, Renato Del Campão brilha com sua Margarida

O excelente “Apareceu a Margarida”, da Cia Teatrofídico, entra no seu décimo ano de apresentações. Trata-se de uma versão dirigida por Eduardo Kraemer para o celebrado texto escrito por Roberto Athayde, possivelmente a dramaturgia brasileira que mais ganhou versões no mundo nos últimos 45 anos. No elenco, Renato Del Campão é Margarida, uma professora extremamente autoritária. Por meio dela, o autor e o diretor sugerem uma metáfora para as consequências dos abusos de poder na vida dos indivíduos. Eis um belíssimo trabalho de interpretação, que merece todas as honras no teatro brasileiro. A montagem faz hoje sua última apresentação no 19o Porto Verão Alegre, no Teatro do SESC, no centro da capital gaúcha.

Uma bela metáfora sobre o fascínio do poder
Filho de Austregésilo de Athayde (1898-1993), aquele que foi por 34 anos consecutivos o presidente da Academia Brasileira de Letras, Roberto Athayde tinha 22 anos quando escreveu “Apareceu a Margarida”, em 1971. Foi seu quarto texto em um bloco de seis obras que o jovem compôs depois de voltar ao Brasil após uma temporada de quatro anos vivendo nos Estados Unidos. Sem mostrar o texto nem para seu pai, nem para sua prima - a famosa crítica de teatro Bárbara Heliodora (1923-2015) -, levou-o para Paschoal Carlos Magno (1906-1980), uma das pessoas mais importantes do teatro brasileiro entre as décadas de 40 e 70. Graças a isso, fez com que a obra chegasse às mãos do ator Luís de Lima (1925-2002), que tinha atuado com destaque em “Casa de bonecas”, de Henrik Ibsen, na versão dirigida por Cecil Thiré. Um acidente de carro fez com Luís de Lima ficasse impossibilitado de encenar Dona Margarida. O texto de Athayde passou, então, de Tereza Rachel (1934-2016) para Leila Diniz (1945-2002) até encontrar interesse em Marília Pêra (1943-2015).

A primeira versão de “Apareceu a Margarida” estreou no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, em 4 de setembro de 1973, sendo essa o segundo espetáculo dirigido por Aderbal Freire-Filho. Na prévia para censura, seis imortais foram levados à sessão pelo pai do dramaturgo e a peça não só foi aprovada, como teve sua classificação indicativa reduzida para 14 anos. Dois meses depois, porém, a opinião da censura mudou e a produção foi retirada de cartaz até que fossem feitos vários cortes. Com Margarida, Pêra recebeu seu segundo Prêmio Molière de Melhor Atriz (RJ) e o Prêmio Governador do Estado (SP). A partir daí, começaram a surgir montagens internacionais, a começar pela dirigida pelo argentino Jorge Lavelli com a célebre atriz francesa Annie Girardot (1931-2011). O próprio Roberto Athayde dirigiu a versão americana com a atriz Estelle Parsons, que foi achincalhada pela crítica na produção de 1978. Atualmente, mais de trinta países já tiveram suas versões da peça, fazendo dela um fenômeno mundial da dramaturgia brasileira.

Marília Pêra
Com vários cortes a ponto de chegar a ter só 75 min, Marília Pêra manteve “Apareceu a Margarida” em seu repertório nos anos oitenta e noventa. É de 1996, a última apresentação de que se tem notícia até o momento. Em 2007, Marília Medina, com direção de Bruno Garcia, iniciou nova versão da peça que, ainda hoje, faz apresentações ocasionais no país. A produção da companhia gaúcha Teatrofídico, sobre a qual essa crítica aqui se refere, estreou em 8 de agosto de 2008 na Usina do Gasômetro. Por esse trabalho, o ator Renato Del Campão foi indicado ao Troféu Açorianos de Teatro Gaúcho na categoria Melhor Ator.

Sobre a dramaturgia, vale ressaltar que Roberto Athayde não escreveu uma crítica à ditadura militar. Pesquisadores respeitados afirmam que não há menções à política em qualquer um dos seus 28 textos (só Aderbal Freire-Filho dirigiu quatro deles). Não é um autor de esquerda, não é militante de nenhuma vertente ideológica, manteve-se sempre afastado de qualquer debate nesse sentido. Assim, todas as leituras que levam a essa abordagem que se fazem sobretudo de “Apareceu a Margarida” são ou da ordem da recepção do espetáculo ou de algum ponto mais original da encenação com méritos à direção ou à interpretação. 

A peça é a primeira aula de Dona Margarida, uma professora que assume uma turma primária logo depois do falecimento da docente anterior. (No Brasil, até 1971, o ensino era dividido em primário (5 anos), ginásio (4 anos) e secundário (3 anos). ) Como tal, ela leciona todas as disciplinas: francês, biologia, religião, matemática, geografia, português, entre outras, em uma escola privada e para uma turma mista. O realismo para por aí: ele é um trampolim para o absurdo que melhor lê essa dramaturgia. O extremo autoritarismo da professora, suas práticas na sala de aula (ela fica seminua, usa drogas, diz inúmeros palavrões, etc) e sobretudo os vários momentos em que se abre espaço para suas memórias pessoais tornam a peça claramente interessada em ser lida a partir de um código próprio. Na situação da narrativa, o absurdo situa os envolvidos – os personagens e o público – diante de um abismo onde tudo é possível. É nesse abandono a uma força que tudo pode é que nos encontramos. E talvez esse seja o panorama mais interessante de “Apareceu a Margarida”.

Margarida, algoz e depois vítima, é um símbolo do poder, mas a peça de que ela é a personagem principal é uma metáfora para um debate sobre como o poder é fascinante. Se, após todo o horror que a professora vomita em sua aula, os alunos sentirem, de alguma forma, pena dela, é sobre essa relação que “Apareceu a Margarida” é. A incapacidade de assumir uma postura mais ativa ou uma forte tendência em delegar para as instituições (governo, igreja, família) ou para outras instâncias públicas (a televisão e a grande mídia, por exemplo) a tarefa de pensar, de decidir e de agir são os focos da crítica que a dramaturgia oferece. Na cena final, quando se descobre na bolsa da professora uma arma capaz de destruir tudo, o aluno se senta amedrontado, resumindo o ponto de vista pessimista de Athayde nesse texto. Por que não lutamos? Por que não a expulsamos? Por que nos resignamos? São essas as perguntas que pairam quando a peça termina. E é baseado nesse mérito que podemos agora analisar a qualidade da montagem dirigida por Eduardo Kraemer.

Renato Del Campão em trabalho memorável
Em todos os aspectos, a versão da Cia. Teatrofídico potencializa com excelência os méritos do texto de Roberto Athayde. Com direção de Eduardo Kraemer, todo o ritmo da peça se dá a sentir através da vibrante articulação entre tempos diferentes em que se alternam episódios distintos. Margarida surge imponente, esmagando os alunos na abertura. Depois, atravessa crises de rebeldia quando um aluno se atrasa ou quando há um cheiro ruim que se espalha no ambiente. Retorna como mãe detentora da missão de cuidar e de proteger os alunos e exibe seu lado mais humano até se encontrar diante de uma derrota ou de uma vitória que só quem ver a peça (e pensar sobre ela) poderá identificar. Esses quadros, lado a lado, uns sobre os outros, como mergulhos e distanciamentos, oferecem a oportunidade de ver a complexidade da questão, o que é excelente.

Vale dizer ainda sobre a direção de Kraemer que a montagem consegue o feito de divertir sem despretensiosamente entreter e faz pensar sem enrijecer. Além disso, promove uma experiência sensorial de primeira grandeza sem que a rígida relação entre palco e plateia se destrua, mas, ao contrário disso, seja feita como conteúdo da abordagem e não apenas aspecto formal. Eis um grande trabalho apoiado nos muitos méritos do texto, mas também nas interpretações e demais colaborações.

É muito possível que Renato Del Campão encontre, em sua Margarida, o melhor momento de toda a sua vasta e celebrada carreira profissional como ator até aqui. Nela, vê-se a exuberância de seu enorme talento, parte considerável de seu imenso repertório expressivo. O modo como a voz, os tons, as entonações e os ritmos vibram no estabelecimento de uma rica paleta de cores sonora mantém, nesse âmbito, o espetáculo em altíssimo nível. Como se não bastasse, há colaborações qualificadas também no uso do corpo e das expressões faciais e gestuais, tornando a movimentação outro aspecto muito positivo. Como raramente se vê, o ator não apenas domina o público, como sustenta sua atenção ao longo da peça que dura duas horas, oferecendo oportunidades para a gargalhada e para o riso, mas também para a reflexão e a emoção. Há aqui o pulsar de um trabalho memorável no teatro brasileiro do qual o povo gaúcho pode se orgulhar.

Brilho na grade de programação teatral de Porto Alegre
A montagem de “Apareceu a Margarida” conta ainda com a colaboração da interpretação de Jairo Klein, que dá vida a um aluno e localiza o lugar do público nesse papel da narrativa. De maneira intensa e sem jamais desequilibrar o balanço das atenções, apresenta o ator um ótimo trabalho dentro do proposto. Vale ressaltar ainda, de maneira muito positiva, o figurino de Antônio Rabadan, a trilha sonora de Maninha Pedroso e do Teatrofídico, bem como o cenário e o desenho de luz participam ativamente da estrutura espetacular. Em todos esses elementos, há a potência de algo que pode explodir na construção do sentido do todo. Sem dúvida, em todos esses aspectos, se vê o cuidado nos mínimos detalhes, a preocupação com todos os registros que compõem a cena junto com o texto e com as interpretações.

Esse “Apareceu a Margarida”, entrando no seu décimo ano de apresentações, eleva a qualidade da grade de programação teatral na capital gaúcha nesse verão de 2018. É um prazer aplaudir mais uma vez. E que seja sempre!

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FICHA TÉCNICA
Autor: Roberto Athayde
Direção: Eduardo Kraemer
Atuação: Renato Del Campão (Dona Margarida ) e Jairo Klein (aluno)
Figurinos: Antonio Rabadan e Curso de Design de Moda e Tecnologia da Feevale
Fotos: Thiago Tavares
Material Gráfico: Eduardo Kraemer
Trilha Pesquisada: Cia Teatrofídico
Trilha Composta: Maninha Pedroso
Realização: Cia Teatrofídico

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