quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Língua mãe – Mameloschn

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Foto: Adriana Marchiori

Mirna Spritzer

Glória nos 40 anos de carreira de Mirna Spritzer

“Língua mãe – Mameloschn” é a peça que ganhou o troféu Açorianos de Melhor Espetáculo de 2015 do teatro gaúcho. Dirigida com muita firmeza por Mirah Laline, a partir do texto original da russa-germânica Mariana Salzmann, a ótima montagem narra os conflitos de três mulheres de gerações diferentes na mesma família: a avó, a mãe e a filha. Judias, moradoras da antiga Alemanha Oriental, o relacionamento entre elas vai à convulsão quando a mais jovem decide ir embora para os Estados Unidos. No elenco, Valquíria Cardoso e Ida Celina apresentam trabalhos bastante positivos de interpretação, mas é Mirna Spritzer quem brilha absoluta. Comemorando seus 40 anos de carreira como atriz, ela recebeu o Prêmio Braskem Em Cena de 2015 por sua participação nesse espetáculo. A montagem conta ainda com a interpretação da trilha sonora original ao vivo por Philipe Philippsen. A produção abrilhantou a programação teatral do 19o Festival Porto Verão Alegre.

Dramaturgia excelente
Escrito e lançado em 2013, em Berlim, o texto “Muttersprache- Mameloschn” reflete sobre as relações de influência entre família e indivíduos na construção da identidade. Ao longo de toda a peça, a jovem Raquel (Valquíria Cardoso) se esforça em recusar a colaboração de sua mãe Clara (Mirna Spritzer) na condução de sua vida. Por outro lado, Clara repele as tentativas de sua mãe Lin (Ida Celina) de se aproximar tanto dela como da neta. Nesse contexto, as três sofrem suas próprias presenças e, não menos, suas ausências no passado das demais.

A personagem Lin foi inspirada na vida da cantora holandesa Lin Jaldati (1912-1988). Ela é mundialmente conhecida por ter sido uma das últimas pessoas que viu a jovem escritora Anne Frank (1929-1945) viva quando ambas eram prisioneiras no Campo de Concentração em Bergen-Belsen. No entanto, sua fama primeira se deu por ter se tornado, depois do holocausto, uma renomada cantora de música iídiche entre anos 50 e 70, se apresentando em diversos países do bloco comunista. “Língua mãe – Mameloschn”, porém, não é uma peça biográfica e, sobre ela, vale dizer que a referência da criação da personagem Lin é só uma ilustração que colabora no debate sobre pertencimento. 

Se se considerar o genocídio cultural e humano empreendido pela ultra direita alemã (leia-se nazistas) contra os judeus (e contra outros povos também) ao longo do Terceiro Reich, pode-se entender a importância da preservação dos hábitos, costumes e dos valores para o povo descendente de Abraão. Assim, para as três personagens da peça, o que as une ou as separa de um país, de uma nação, de uma religião, partido político, movimento social ou de causa são tipos de laços diferentes. Raquel quer aprender mais sobre judaísmo e Clara, por seu turno, reclama das ausências de sua mãe em sua vida. Lin, que não tem para aonde ir, ressente-se por ter sido admirada pelo mundo, mas não por sua própria prole. Todas sentem falta de Davi – não apenas o célebre Rei de Israel que unificou as doze tribos judaicas, mas - , o irmão gêmeo de Raquel que, há um tempo, foi morar em uma comunidade rural e, desde então, não dá notícias. Todas sentem falta umas das outras na medida em que as repelem entre si. 

O texto “Língua mãe – Mameloschn” toca o público por se utilizar da família para tratar das redes que se estabelecem entre as pessoas e das consequências dessas interações. Como em um espelho, as duas expressões do título significam a mesma coisa em línguas diferentes, o que revela o interesse dessa bela dramaturgia em falar de cultura, de diálogo e de transformação. Eis uma bela história!

O brilho de Mirna Spritzer
A direção de Mirah Laline, assistida por Júlia Ludwig, utiliza o palco aberto para talvez paradoxalmente expressar as barreiras existentes entre as personagens. Vistas integralmente ao longo de toda a encenação, as figuras fazem de suas presenças um meio de sustentar a tensão. O íntimo e o privado são constantemente rasgados pelo familiar e o notório em um jogo que acaba misturando as três mulheres de gerações diferentes em um amálgama que preserva suas individualidades. Em ótimo ritmo e produzindo quadros de extrema beleza, o feito garante os melhores méritos do espetáculo.

Valquíria Cardoso faz de sua Raquel o furacão que incendeia a vida de sua mãe e de sua avó. Por meio de uma interpretação quase agressiva, a atriz oferece à personagem meios dela cumprir bem a tarefa de espantar a poeira de sua casa ancestral e movimentar a narrativa. Ida Celina, com humor, graça e carisma deixa sua Lin representar o passado sem que esse pareça velho e chato. O modo como a intérprete usa os tempos é uma aula de teatro!

Mirna Spritzer brilha em “Língua mãe – Mameloschn”. Por vezes posicionando-se narrativamente entre sua mãe e sua filha, a personagem Clara ganha, com a intérprete, uma fulgurante carga emotiva prestes a explodir. Com gestos muito sutis, delicados movimentos de olho e expressões marcadas com sinais bastante claros, Spritzer convida a audiência para vê-la ao longo de toda a apresentação. E retribui a atenção, devolvendo uma belíssima cena de desabafo capaz de emocionar.

Mirna Sprizer como Rosalinda em
"A maldição do Vale Negro"
Em 2017, Mirna completou 40 anos desde de sua estreia como atriz no espetáculo “Um edifício chamado 200”, espetáculo dirigido por João Pedro Gil com dramaturgia de Paulo Pontes. De lá para cá, valem citar suas participações em “A maldição do Vale Negro”, de 1986, com direção de Luiz Arthur Nunes para o texto de Caio Fernando Abreu; e “Mahagonny”, de 1988, com direção de Irene Brietzke a partir da obra de Bertolt Brecht e Kurt Weill. Por suas participações nessas montagens do grupo Teatro Vivo, ela recebeu respectivamente os Troféus Açorianos de Melhor Atriz Coadjuvante (dividindo com Ida Celina, que também estava no elenco de “A maldição do Vale Negro) e de Melhor Atriz. Como professora no Departamento de Arte Dramática da UFRGS desde 1986, desenvolve lá intenso trabalho como pesquisadora, tendo protagonizado durante muitos anos a reflexão sobre o ator, a voz e a linguagem radiofônica, sem nunca ter se afastado por muito tempo dos palcos. Seu aniversário de vida profissional é motivo de muita alegria para todos os amantes das artes.

Potente participação da trilha sonora de Philipe Philippsen
Dentre os demais elementos estéticos, destaca-se a trilha sonora original composta e interpretada ao vivo por Philipe Philippsen. A musicalidade facilmente associada às canções folclóricas judaicas bem enleva a narrativa, dando-lhe respiros poéticos bastante qualificados. Em alguns momentos, porém, o volume muito alto concorre com a voz das atrizes, prejudicando a compreensão do que as personagens dizem. Philippsen, na encenação, atua como David, o filho ausente de Clara. Ele é o destinatário de várias cartas que a ele são escritas. Sua presença física neutra no palco garante a tensão de sua ausência na ficção, um outro mérito bastante especial da direção de Laline nesse espetáculo.

As contribuições modestas do figurino de Rô Cortinhas, da luz de Ricardo Vivian e do cenário de Rodrigo Shalako colaboram para a fluência do ritmo, permitindo ao espetáculo correr mais livre por meio do texto, da música e das interpretações.

Por todos os seus méritos, “Língua mãe – Mameloschn” merece novas pautas na capital gaúcha e no país. Vida longa! Aplausos.

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FICHA TÉCNICA
Texto: Mariana Salzmann
Tradução: Camilo Schaden, Carla Bessa, Fabiana Macchi, Herta Elbern, Luciana Waquil e Marcos Tulius Franco Moraes
Direção: Mirah Laline
Elenco: Ida Celina, Mirna Spritzer, Valquíria Cardoso e Philipe Philippsen
Iluminação: Ricardo Vivian
Trilha musical original: Philipe Philippsen
Cenário: Rodrigo Shalako
Figurinos: Rô Cortinhas
Assistência de Direção: Júlia Ludwig
Assessoria de Imprensa: Bruna Paulin – Assessoria de flor em flor
Produção: Rodrigo Ruiz
Realização ATO Cia. Cênica

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