quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

A partícula de Deus (RS)

www.facebook.com/criticateatral
No instagram: @criticateatral
Foto: Diogo Vaz


Heitor Schmidt e Luis Franke

O bom encontro entre Galileu Galilei e Peter Higgs


Lançada no fim de 2016, a peça “A partícula de Deus – O dia em que Peter Higgs encontrou Galileu Galileu” é uma das mais novas comédias produzidas pelo Complexo Criativo Cômica Cultural. Sem muitas pretensões estéticas, ela visivelmente se propõe a ser uma oportunidade para, através do humor, incluir na agenda de interesses do público um pouco de filosofia, de física e de questões teológicas. E consegue relativamente bem atingir seus objetivos. Com texto de Julio Conte e de Marcelo Goldani, e direção do primeiro, ela é defendida por Renata Stein, Luis Franke e por Heitor Schmidt, os dois últimos nos papeis títulos e em maior destaque. Foi uma boa opção na grade de programação do 19o Porto Verão Alegre em sua apresentação no lindo teatro do Centro Histórico-Cultural Santa Casa, no centro da capital gaúcha.

Galilei e Higgs se encontram com Didi e Gogo
A dramaturgia de Julio Conte e de Marcelo Goldani se dá na antessala de alguém importante. Nela acontece o encontro de dois homens que esperam por uma audiência com o terceiro. Um deles veste uma roupa característica do século XVII na Europa, contrapondo-se com a estética de todo o ambiente e dos demais personagens. Vem daí o primeiro estranhamento. Lá pelas tantas, fica-se sabendo de que se tratam de dois cientistas muito importantes na história da humanidade. Eles estão à espera de um encontro com Deus: Galileu Galilei (1564-1642) e Peter Higgs, o primeiro já falecido há muitos anos e o segundo ainda vivo.

A ocasião é insólita. O personagem Higgs começa a duvidar sobre se está realmente vivo ou se morreu sem perceber. Por outro lado, Galileu se enfastia com a demora de Deus em recebê-lo. A espera coloca ambos na obrigação de um diálogo. Por que será que eles estão ali?

Galileu Galilei
Galileu Galilei (1564-1642) é um dos homens mais importantes da história da humanidade. Suas reflexões, para muito além da astronomia, revelam a complexidade não apenas do seu tempo, mas de toda uma cultura em transformação. Partindo de contribuições de pensadores contemporâneos e antigos e se utilizando dos avanços tecnológicos que uma Itália pós-Renascença lhe possibilitava, ele contribuiu de maneira ímpar para a estruturação de um novo panorama histórico. Sua argumentação científica mudou o lugar de Deus, seu conceito, suas funções, sua relação com os homens, com a política e com a sociedade. Em uma época nunca antes tão marcada pelas guerras religiosas, em que as fronteiras já alargadas do mundo precisavam se solidificar, ele foi definitivo.

Desde os gregos Aristóteles (384 – 322 a. C) e Ptolomeu (90 – 168 d. C.), prevalecia o sistema geocêntrico segundo o qual o sol e todos os demais astros giram em círculos perfeitos e constantes ao redor da Terra, onde há vida. Foi o polonês Copérnico (1473-1543) quem introduziu, como única diferença a esse modelo, a hipótese de que era a Terra que estava no centro. O italiano Galilei foi além. Para ele, em primeiro lugar, isso não era uma hipótese, mas uma verdade. A Terra não só se movia em redor do sol, mas se movia ao redor do próprio eixo e a Lua, que não era uma esfera perfeita, se movia em volta da Terra. Algo assim também acontecia com outros planetas, onde a vida poderia ser possível como aqui. Seus argumentos eram consistentes o bastante para fazer seus estudos célebres por toda a península. O problema foi sua tese de que os versículos bíblicos que diziam o contrário precisavam ser reinterpretados.

Se o dia e a noite, os movimentos das marés, o aparecer e o desaparecer dos astros do céu são obras da física, o que faz Deus? Se os teólogos da Igreja erraram na interpretação da Bíblia, para que eles servem? Tudo isso se parecia demais com o que dizia o padre dominicano Giordano Bruno (1548-1600), morto na fogueira da Inquisição. Para piorar, Galilei estruturou sua obra “Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo”, lançada em 1632, em uma conversa entre dois homens: um acadêmico inteligente (Salviati) e um padre idiota (Simplício). Nas palavras do segundo, estavam reproduzidas as ideias do então Papa Urbano VIII, que o autor havia conhecido anos antes. Nesse sentido, entre o célebre Copérnico e o incendiado Bruno, o pêndulo do destino de Galilei caia para o pior. Para adiante de uma leitura rasteira (porque óbvia) da Inquisição como malvada, sobram perspectivas mais profundas, como aquelas que revelam o aspecto político daquele contexto. Tanto as forças que abafaram como aquelas que eternizaram as contribuições de Galileu Galilei estão no cerne da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), esse talvez um dos conflitos mais importantes da Idade Moderna.

Por volta do centenário da Reforma Protestante, vários reinos que hoje são conhecidos como Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Holanda (entre outros) estavam em uma acirradíssima disputa pela liderança política e principalmente econômica no mundo. Essa só era possível através da posse de colônias na América, África e na Ásia. Lutero (Alemanha), Calvino (França) e Henrique VIII (Inglaterra) haviam colocado em xeque a força do Vaticano de referendar os avanços militares principalmente da Casa de Habsburgo (Sacro Império Romano-Germânico) nessa corrida. Na primeira metade do século XVII, a Europa estava dividida entre União Evangélica de um lado e Liga Católica do outro. Os Tribunais do Santo Ofício eram a bomba atômica (já usada com força há mais de duzentos anos contra os muçulmanos e judeus) em favor da segunda. Eis que, ameaçados (política-economicamente) pelos católicos Habsburgo, os também católicos Valois (da França), leia-se Cardeal Richelieu, entraram na batalha surpreendentemente a favor dos Protestantes. E é nesse momento que a Inquisição precisou ser mais efetiva do que jamais fora.

Amigo de Galilei, o Papa Urbano VIII livrou-o da fogueira, prendeu-o em casa e tentou calá-lo até sua morte, que aconteceu em 1642. Seis anos depois, a Paz de Vestfália foi assinada em favor da liberdade religiosa na Europa. Em 1965, a Inquisição passou a se chamar Congregação para a Doutrina da Fé (que ainda existe!). Em 1992, o Papa João Paulo II finalmente reconheceu o erro da Igreja para com Galilei e, em 2000, para todos os punidos pelo Santo Ofício. A obra de Galileu Galilei felizmente conseguiu atravessar os campos de batalha e chegou até nós todos.

Peter Higgs
Nascido em 1923 em Newcastle, extremo norte da Inglaterra, o físico Peter Higgs se popularizou por suas pesquisas acerca de uma nova partícula subatômica que veio a se chamar depois de “bóson de Higgs” ou mais popularmente conhecida como “a partícula Deus” (sic). Seus escritos sobre o tema, lançados em 1964, predisseram a descoberta que só foi finalmente comprovada em 2012, quando a comunidade científica internacional celebrou o encontro da peça que faltava na teoria do Big Bang. Em linhas gerais, o bóson de Higgs é o que fez (e ainda faz) com que partículas sem massa, sem matéria, ganhem corpo, isto é, nasçam. Ou seja, o sopro divino.

No início do século XX, as conclusões de Albert Einstein (1879-1955) de que o universo era estático foram contrapostas pelas de Edwin Hubble (1889-1953) que previa um universo eternamente em expansão. Em 1927, o padre jesuíta George Lamaître (1894-1966) lançou sua “hipótese do átomo primordial” que dizia, entre outras coisas, que, se o universo está constantemente em expansão, é porque ele foi, um dia, um único bloco extremamente quente e em vias de explosão. Essa teoria, que foi grosseiramente chamada na década de 1940 de “Big Bang”, resume o que aconteceu há 13,7 bilhões de anos no momento em que nasceu o universo. Esse primeiro átomo era, na verdade, uma sopa cósmica de energia sem massa se movimentando internamente em altíssima velocidade. As partículas internas do átomo interagiam por meio da gravidade, do eletromagnetismo e das forças nucleares fortes e fracas. O bóson de Higgs seria uma partícula surgida entre a interação das forças fracas e da eletromagnética que obrigaria outras partículas a fazer mais força para se movimentar. Isso seria ocasionado pela quebra de simetria espontânea entre os termos. A força gera massa e, assim, por exemplo, uma partícula que era só luz passou a ter corpo.

A atuação do bóson de Higgs ficou comprovada pelos testes que só foram possíveis a partir do lançamento do LHC (Large Hadron Collidor), instrumento que consumiu 10 bilhões de dólares e que só conseguiu ser inaugurado em 2008 entre a Suíça e a França. Trata-se de um enorme acelerador de partículas, por meio do qual elas ficam girando a 99,9% da velocidade da luz (300km por segundo) até se chocarem entre si. Em 2012, o choque entre pedaços de átomos fez ver outros pedaços ainda menores, entre eles, o tal bóson de Higgs. Um ano depois, Peter Higgs ganhou o Prêmio Nobel de Física por seu predito de cinquenta anos antes.

A expressão “Partícula Deus” vem do título de um livro do físico norte-americano Leon Lederman lançado em 1993 e que ainda não teve uma versão oficial editada no Brasil. A obra é um relato das buscas fracassadas da comunidade científica pelo bóson de Higgs. Inicialmente, o autor nomeou o livro como “A partícula maldita” (“The Goddamn Particle”), mas, por sugestão do editor, a obra passou a se chamar “A partícula Deus” (“The God Particle”). A preposição “de” veio das referências à obra pela mídia e consiste em um erro crasso de tradução. Dizer que a partícula é Deus é diferente de afirmar que tal pertence a Deus.

“Esperando Godot”
Na peça “A partícula de Deus”, os personagens Peter Higgs e Galileu Galilei se encontram na confrontação do lugar de Deus no fenômeno da criação. Em termos teológicos, o avanço da ciência pode representar, em mentes mais fechadas, a expulsão do domínio do divino. É pelas consequências desses atos de descoberta que Higgs e Galileu estão ali, naquele lugar fictício, à espera de um encontro com o “Criador”.

Para além de toda a primeira parte de introdução dos personagens e do que os leva até ali, há um ótimo trecho no fim da peça. É quando o encontro entre Higgs e Galilei se aproxima do de Estragon e Vladimir, personagens célebres do clássico “Esperando Godot”, obra prima do irlandês Samuel Beckett (1906-1989). Escrita no fim dos anos 40, a peça situa dois homens - Estragon (Gogo) e Vladimir (Didi) - esperando por um terceiro chamado Godot, com quem eles querem uma entrevista. De alguma forma, eles acreditam que essa oportunidade possa lhes oferecer uma melhora em suas vidas: pelo menos, um lugar quente onde possam dormir. O vazio do palco e a poética existencial de dois seres cuja vida ganha sentido no ato da espera (por algo que não vem) são dois traços marcantes na obra. A liberdade que se apõe à prisão, e Gogo e Didi estão presos em um tempo que não passa, associa essa obra aos conceitos mais fundantes sobre tragédia. Os diálogos, principalmente aqueles que falam sobre deus e sobre Cristo, empurram a audiência para o que há de mais humano em suas presenças clownescas. Toda a situação, lida como absurda por muita gente, fisga o leitor apesar da não evolução do tempo, da não troca do espaço, da negação das bases mais sólidas da teoria da narrativa.

Célebre também por “Fim de partida” e por “Dias felizes”, que foram escritos depois, a tragicomédia “Esperando Godot” fez Samuel Beckett famoso pelo mundo. A falência da sociedade, na Europa do pós-guerra, se via nas ruínas por toda a parte: nos milhares de mortos e de desaparecidos, na falta de graça, na grande pobreza. Em 1953, em Paris, quando “En Attendant Godot” foi apresentado pela primeira vez, o sucesso foi arrebatador. Depois, Londres, Nova Iorque e o mundo. Em 1969, Samuel Beckett ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.

Se a dramaturgia de “A partícula de Deus” por vezes gasta-se na situação dos personagens, ela atinge excelentes méritos quando essa questão está vencida. É interessante reparar como o humor vai se tornando mais refinado ao longo da leitura, abandonando as figuras míticas e o blá-blá-blá de dois homens comuns e avançando por questões mais existenciais e, ainda assim, tão cômicas quanto trágicas. É sem dúvida um bom texto de Julio Conte e de Marcelo Goldani.

Interpretações carismáticas de Luis Franke e Heitor Schmidt
Infelizmente, a encenação não valoriza o texto. O péssimo cenário, o figurino improvisado e a trilha sonora pautada em canções populares levam a obra para um lugar de amadorismo bastante negativo. Dirigida por Julio Conte com assistência de Catharina Conte, a peça sofre com o uso desses aspectos sonoro-visuais porque imediatamente se vincula a um lugar pouco valoroso de comédia popular de baixo orçamento. Por outro lado, talvez sejam justamente esses aspectos que permitam que o espetáculo surja de maneira mais leve e carismática enquanto seus níveis mais superiores não se aprofundam. Considera-se, no entanto, que há formas mais elegantes e concebidas de maneira mais consistente que permitiriam ao espetáculo chegar aos mesmos méritos e ainda a outros melhores.

A articulação dos quadros é marcada pelas intervenções cênicas da Secretária de Deus, personagem interpretado por Renata Stein. De modo muito interessante, os momentos pautam o lugar do absurdo no contexto narrativo, reforçando o estranhamento como principal chave de interpretação da obra na relação entre palco e plateia. Desse movimento, deve-se extrair o interesse da encenação em, por lado, deixar que a peça avance na comédia de costume, mas, de outro, suspendê-la em uma proposta estética mais avançada. A partir da observação desse percurso, reconhece-se com mais facilidade a trajetória argumentativa de “A partícula de Deus” no período de tempo e de espaço em que ela se apresenta.

Luis Franke e Heitor Schmidt atingem ambos alguma profundidade nas interpretações de Galilei e de Higgs respetivamente. Começando pelo primeiro e avançando no segundo, os dois intérpretes alcançam bom carisma na defesa de suas construções. Como já se disse, a produção lhes fornece uma dramaturgia interessante, mas muitos desafios a vencer na ordem do guarda-roupa, do cenário e da trilha sonora. Com bons usos da voz e das intenções, eles conseguem tirar proveito adequado, mantendo seus personagens com um registro realista que talvez seja sadio para a proposta nessa encruzilhada. Renata Stein, em lugar mais confortável, consegue expor sua criação de modo mais livre e igualmente bom.

Bom encontro
Mesas de bar, um divã com o fundo caindo, Galileu usando camiseta de malha e músicas populares em shuffle fazem um péssimo conjunto em "A partícula de Deus". Através desses e de outros elementos também mal usados, a produção cheira à montagem feita de qualquer jeito, para se apresentar em qualquer buraco e para qualquer pessoa. Essa aparência não condiz com o que se sabe serem os intentos e a experiência da Cômica Cultural por meio de seus realizadores. É nesse sentido que se observa que a montagem, seus criadores e público se beneficiariam com uma proposta estética mais bem acabada. Oxalá mudanças sejam feitas em próximas temporadas.

“A partícula de Deus – O dia em que Peter Higgs encontrou Galileu Galileu” ganharia se surgisse na programação gaúcha com melhor acabamento. Eis, desde já, uma produção boa de se ver e digna de aplauso.

*

FICHA TÉCNICA
Texto: Julio Conte e Marcelo Goldani;
Direção: Julio Conte;
Elenco: Luis Franke, Heitor Schmidt e Renata Stein;
Assistência de Direção: Catharina Conte;
Iluminação: Fabiana Santos;
Sonoplastia e Projeções: Ismael Goulart;
Cenotécnico: Kiko Angelim;
Produção Executiva, Assessoria de Imprensa e Mídias Sociais: Gustavo Saul;

Direção de Produção: Patsy Cecato;
Realização: Fundação Médica do Rio Grande do Sul e Complexo Criativo Cômica Cultural;

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!