domingo, 21 de janeiro de 2018

Santo Qorpo ou O louco da província (RS)

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Foto: divulgação


Elenco

Homenagem a Qorpo Santo sucumbe em espetáculo ruim


“Santo Qorpo ou O louco da província” traz de forma negativa a figura célebre do dramaturgo gaúcho Qorpo Santo (1829-1883) ao verão porto-alegrense. O espetáculo é muito ruim porque tem uma dramaturgia mal escrita, uma direção que não se posiciona onde tem que se posicionar e uma coleção de péssimos trabalhos de interpretação. Escrita a partir do romance “Cães da província”, de Luiz Antônio de Assis Brasil, e da obra “Ensiqlopédia ou Seis mezes de huma enfermidade”, de Qorpo Santo, a dramaturgia é assinada por Áquila Mattos, Juçara Gaspar, Jeferson Cabral e por Naomi Luana. Dirigido por Inês Marocco, o espetáculo tem, no elenco, Jeferson Cabral, Rodolfo Ruscheinsky, Ketti Maria, Magda Schiavon, Renata Cieslak, Naomi Luana e Eduardo Schmidt ao lado de Aline Ferraz, Renan Leandro e de Juçara Gaspar, esses últimos em boas atuações. Da montagem em cartaz junto de outras 77 produções no 19o Porto Verão Alegre, devem-se destacar os ótimos figurinos de Rô Cortinhas e o desenho de luz de Fernando Ochoa. A peça se apresenta até hoje no Teatro Renascença. 

Inúmeros problemas na dramaturgia 
A intenção é boa, mas insuficiente. Entende-se que, ao escrever o texto, Áquila Mattos, Juçara Gaspar, Jeferson Cabral e Naomi Luana quiseram colaborar com (ou talvez promover!) a celebração da obra do dramaturgo José Joaquim de Campos Leão, autodenominado e conhecido por Qorpo Santo. Isso é positivo e deve ser aplaudido. No entanto, a partir do que se vê no palco em “Santo Qorpo ou O louco da província”, sobram problemas na construção dramatúrgica. Há momentos em que a peça quer ser a versão teatral do romance “Cães da província”, de Luiz Antônio de Assis Brasil. Há outros em que se dedica em oferecer a encenação de trechos de algumas das dezessete peças que Qorpo Santo escreveu ao longo de 1866 em Porto Alegre. E, por fim, há partes em que a dramaturgia quer divulgar a biografia do homenageado. Para quem está assistindo, isso tudo resulta em uma enorme confusão que fica ainda pior pela recorrência de diálogos longos em ação inexistente e nos problemas da ausência de um posicionamento claro sobre o conteúdo que se está viabilizando. 

Publicado em 1988, “Cães da província” é uma obra de ficção que une pontos de vista do seu autor sobre fatos históricos (como os crimes da Rua do Arvoredo e como a biografia de Qorpo Santo) e uma criação original de personagens inventados como Eusébio e Lucrécia e da história de ambos. Em si só, trazê-la sozinha para o palco já seria um feito complexo dados os vais e vens de sua narrativa. O mesmo se pode considerar a respeito da biografia de Qorpo Santo: ele era louco mesmo? Ou ele foi vítima da sociedade da época? Sabemos de seus posicionamentos radicais, mas aquilo que realmente está documentado (e que não é obra de ficção) nos oferece quais reflexões sobre sua vida? E, por fim, considerando sua obra dramatúrgica, o que ela tem a dizer sobre o mundo, sobre o seu autor e sobre si mesma? 

Em “Santo Qorpo ou O louco da província”, são citadas de modo direto ou indireto, pelo menos, oito peças de Qorpo Santo: “A impossibilidade da santificação ou A santificação transformada”, “A separação de dois esposos”, “Eu sou vida; eu não sou morte”, “Mateus e Mateusa”, “O marinheiro escritor”, “Um assobio” e “Um credor da Fazenda Nacional”. Algumas delas surgem nessa dramaturgia de modo direto quando os outros momentos da peça param para entrar uma cena inteira sem conexão com o resto. Há inúmeras posições diferentes de pessoas diversas sobre a contribuição de Qorpo Santo para o teatro. Todas elas não se esquecem de observá-la a partir da dúvida sobre sua sanidade, quase considerando sua dramaturgia assim como se consideram as obras plásticas dos artistas do Centro Psiquiátrico de Engenho de Dentro – o coletivo criativo coordenado nos anos 40 por Nise da Silveira e por Almir Mavignier. É teatro, mas até que ponto é esteticamente relevante? (São filosofia as belas reflexões que nos ofereceu a catadora de lixo esquizofrênica Estamira?) A peça, de algum modo, parece se posicionar no argumento de que Qorpo Santo foi vítima. Por outro lado, não se exime de reproduzir a versão de Assis Brasil do diálogo entre o dramaturgo e Napoleão III. 

Para além da barafunda promovida pela tentativa de união de intenções diferentes, o texto a oito mãos de Mattos, Gaspar, Cabral e Luana ainda sofre de problemas na organização interna. É interessante o modo como Inácia, a esposa de Qorpo Santo, surge na peça, uma referência trazida de “Cães da província”. No entanto, a rica relação entre ela e seu marido perde força na dramaturgia pelos zilhões de outros personagens e situações que também aparecem. Em vários momentos, a ação parece parar pelo advento de diálogos cujo conteúdo não interfere no enredo principal, estando ali apenas para marcar o interesse da dramaturgia em dar conta do homenageado. Uma hora e meia depois de ter começado, na narrativa, tudo leva a crer que a monotonia se estenderá por mais outros noventa minutos. Então, a peça finaliza mais sucumbida pela exaustão do que propriamente por uma concepção de dramaturgia bem articulada. Em outras palavras, o fim chega ao texto não como uma parte da estrutura dramatúrgica, mas como um cansaço da escrita. E, considerando todos um problemas, traz um alívio na leitura. Merecia, pois, um novo tratamento antes da produção. 

Péssimo uso da voz 
A direção de Inês Marocco, assistida por Gabriela Boccardi e por Magda Schiavon, não resolve os problemas do texto, mas traz ainda outros à versão dele para o palco. Em primeiro lugar, há que se analisar o efeito de fazer quatro atores interpretarem o mesmo personagem na peça. Em segundo lugar, os problemas de triangulação. E, por fim, o panorama geral dos trabalhos de interpretação. 

O recurso de fazer com que quatro intérpretes diferentes deem vida para o mesmo Qorpo Santo seria interessante se o gesto tivesse algo a dizer sobre as personalidades diferentes do homenageado. Se foi essa a intenção, ela não fica clara ao público talvez devido ao modo como o personagem surge embaralhado nas confusões da dramaturgia, que a peça não resolve. A impressão que se tem é de que a opção é um meio de Marocco pontuar o lugar do teatro contemporâneo na abordagem, o que, desconexo, torna-a meramente “engraçadinha”. Pior do que isso, o feito afasta o espetáculo de melhorar o mergulho em Qorpo Santo, porque, no jogo entre os atores, fica mais importante para a audiência entender essa alternância do que, de fato, conhecer o personagem. 

Por outro lado, de modo estranho, há muitos problemas na triangulação. Número incontável de cenas são feitas completamente viradas para o público quase sem contato visual entre os intérpretes. Os monólogos – e há vários deles na peça – parecem diálogos com a plateia, o que vai na contracorrente do texto, esse visivelmente tendido a conversas internas do personagem consigo mesmo. 

Para piorar, de um modo geral, a montagem perde muito com péssimos trabalhos de interpretação. Das dez pessoas do elenco, apenas três sabem dizer o texto de maneira audível e compreensível para a audiência. Em todos os demais, o volume se perde por um mau uso das entonações e as frases perdem a força por uma dicção muito problemática. Em Jeferson Cabral, em Rodolfo Ruscheinsky e em Eduardo Schmidt, três entre os quatro atores que interpretam o protagonista, o caso fica pior, considerando as inúmeras falas que eles têm. Schmidt tem dois momentos positivos de exceção: quando interpreta Qorpo Santo durante o exame e quando dá vida à Mateusa. Ketti Maria, que interpreta Inácia, apresenta um trabalho com os mesmos defeitos infelizmente: o fim das frases não se entende. Em resumo, agregando ainda uma sucessão de problemas na reação dos corpos e no movimento das intenções, “Santo Qorpo ou O louco da província” é muito mal defendido no geral. 

Há três casos positivos que é preciso valorizar. Aline Ferraz e principalmente Renan Leandro e Juçara Gaspar se distanciam dos demais colegas por apresentarem méritos naquilo que os outros não exploram. Suas vozes são bem postas, tudo é claro e sonoro. Além disso, sobretudo em Gaspar, há trabalho de corpo elogiável na viabilização dos personagens, propondo jogos que, se não se desenvolvem a contento, é talvez mais por culpa da contracena. Não se tratam de trabalhos excelentes, mas, pelo menos, neles, se compreende a narrativa com mínima clareza. 

Lindo guarda-roupa 
Sobram os figurinos de Rô Cortinhas e o desenho de luz de Fernando Ochoa como os aspectos mais positivos da montagem. O guarda-roupa, todo ele, apresenta um conjunto de modelos muito bem feitos, o que oferece um panorama visual bastante bonito de se ver. A iluminação aumenta ainda mais os méritos do vestuário, trazendo uma sensação de luz à gás que ajuda a audiência a localizar a narrativa no século XIX. O cenário de Martino Piccinini é composto por versões diferentes de cadeiras de madeira, contribuindo de modo sutil, mas interessante, com o panorama. A trilha sonora, em vários momentos, prejudica a peça devido aos já comentados problemas na dicção dos atores. Não fossem esses, é possível que ofereceria melhor resultado. 

“Santo Qorpo ou O louco da província” estrou em junho de 2014, fazendo temporadas ocasionais desde então. É impossível imaginar como tanto tempo de carreira fez com que tal mau resultado chegasse a 2018. É uma pena. 

*

Ficha Técnica:
Direção: Inês Marocco
Roteiro livremente inspirado no romance "Cães da Província", de Luiz Antônio de Assis Brasil e nos textos de Qorpo Santo
Elenco: Aline Ferraz, Eduardo Schmidt, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar, Ketti Maria, Magda Schiavon, Naomi Luana, Renan Leandro, Renata Cieslak e Rodolfo Ruscheinsky
Cenografia, arte gráfica e fotografia: Martino Piccinini
Figurino: Rô Cortinhas
Iluminação: Fernando Ochoa
Operação de Luz: Vinicius Lopes
Assistência de direção: Gabriela Boccardi e Magda Schiavon
Dramaturgia: Áquila Mattos, Jeferson Cabral, Juçara Gaspar e Naomi Luana
Orientação musical: Adolfo Almeida Jr.
Criação e execução da trilha sonora: O grupo
Assistência na orientação musical: Eduardo Schmidt
Produção: Jeferson Cabral, Juçara Gaspar, Naomi Luana e Renata Cieslak
Divulgação: Juçara Gaspar

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