quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Ludwig/2 (RJ)


Foto: Jackeline Nigri


Manoel Madeira




Bom espetáculo celebra os 20 anos da Artesanal Cia. de Teatro



“Ludwig/2” esteve em cartaz durante o mês de setembro no Mezanino do Espaço SESC Copacabana. O espetáculo foi concebido e produzido em uma residência artística dos diretores Henrique Gonçalves e Gustavo Bicalho na Alemanha. A peça narra a história do Rei Ludwig II (1845-1886) da Baviera (ou Bavária), grande incentivador das artes e uma das personagens mais fundamentais do século XIX. Em ótimos trabalhos, o elenco é formado por Manoel Madeira, ao lado de Suzana Castelo e do ator alemão Andreas Mayer. A montagem tem ainda excelente colaboração de Rodrigo Belay, na iluminação; e de Daniel Belquer, na direção musical e no video mapping. Parte da programação de aniversário de vinte anos da Artesanal Cia de Teatro, eis aí uma produção que merece novas temporadas.

Ludwig II e o século XIX
O retrato de Ludwig II é atravessado pelas questões mais relevantes na história da Europa no século XIX. Sua coroação, em 1864, aconteceu dois anos depois da ascensão de Otto von Bismarck à chancelaria da Prússia, país que se tornaria líder da unificação alemã. Gradativamente voltando suas atenções para a produção industrial, a região se reposicionava a partir do aumento do poderio da Inglaterra, onde a Rainha Vitória reinava desde 1837. Situada entre a Prússia, a Áustria e a França, a Baviera perigosamente se alinhava aos dois últimos, o lado militarmente mais fraco entre as opções. Em paradoxo, a unificação da Alemanha, em 1871, selou um dos momentos mais interessantes da região. Como reino anexado e apesar do poder político reduzido, gozou de estabilidade financeira e grande desenvolvimento social no período.

A morte de Ludwig II ainda é um mistério. O que se sabe é que, preferindo uma vida cada vez mais isolada de suas responsabilidades, a administração do reino passou a ser um problema maior com o passar do tempo. A construção onerosa de castelos enormes, como o Neuschwanstein e o Palácio de Herrenchiemsee, foram um problema para a corte. O grosso investimento em um estilo de vida luxuoso, que o relacionava aos luíses franceses, ia na contracorrente do século. Assolado em dívidas, tanto particulares quanto públicas, o monarca foi afastado do trono. Internado sob um falso diagnóstico de paranoia, morreu três dias depois de sua deposição, em junho de 1886. Seu corpo foi encontrado no lago raso de Starnberg juntamente com o de seu psiquiatra, Dr. Bernhard von Gudden. A coroa passou para seu irmão mais novo Otto e depois para o tio de ambos, Ludwig III, o último rei da Baviera.

Ludwig II era homossexual, o que se revelou nos seus diários e cartas particulares. O noivado com sua prima Sophie Charlotte (1847-1897) durou menos de nove meses e foi terminado por ele sem motivos claros em outubro de 1867. Menos de um ano depois, ela já estava casada com Ferdinand Philippe, irmão mais novo do Conde d’Eu, esse marido da Princesa Isabel do Brasil. Em suas memórias, estão provas de seus sentimentos por Richard Hornig (1841-1911), chefe da cavalaria, e de sua luta contra sua orientação sexual. Além de sua forte religiosidade católica, pairava o exílio imposto ao primo Arquiduque Ludwig Viktor (1842-1919), célebre travesti expulso da corte em 1866. O estilo de vida solitário, ao qual o Rei Ludwig II parece ter sido condenado, é similar ao de Franz Bonaventura, duque da Baviera, herdeiro atual da coroa do primo de seu bisavô.

A encenação da Artesanal Cia. de Teatro tem contradições
Os méritos da dramaturgia de “Ludwig/2”, assinada pelo diretor Gustavo Bicalho, se concentram no modo como o texto celebra a força da arte na personalidade do Rei da Baviera. Também por esse motivo é estranho notar que Richard Wagner (1813-1883), célebre compositor de quem Ludwig II era ídolo, não aparece na história. Nesse sentido, a melhor parte dos diálogos parece estar em conflito com a situação em que eles aparecem. Em outras palavras, enquanto o espectador se envolve com a complexidade do pensamento dessa figura extremamente profunda, tem diante de si como que um triângulo amoroso não-resolvido. O problema é que, historicamente, Richard Hornig (Andreas Mayer) e Sophie Charlotte (Suzana Castelo) são figuras muito mais desinteressantes. O esforço insólito da dramaturgia em dar a eles mais cor é até relevante sob determinados aspectos.

A princípio inexplicavelmente, a encenação rejeitou toda a estética barroca e medieval que tardiamente Ludwig inseriu na paisagem bávara. Em contrapartida, a direção de Gustavo Bicalho preferiu muito preto, botas e cintos de couro, roupas apertadas e poltrona de madeira com molas expostas. O estilo leather black normalmente encontra algumas referências nos boêmios românticos da primeira metade do século XIX na França (esses que inspiraram a segunda geração do romantismo brasileiro e a onda Emocore do fim século XX e início do XXI). Mas Ludwig II nada tem a ver com isso.

Talvez a aposta tenha sido a de apresentar o universo interior do personagem-título, um célebre mistério de sua figura romântica. No entanto, as respostas para isso se encontram na obra de Richard Wagner cujo pensamento e obra exortavam o estabelecimento de uma arte quase litúrgica. Para ele, grande influência da personalidade de Ludwig II, a arte era lugar onde o homem se encontrava com o sagrado (e a ópera “Lohengrin” é repleta de amostras disso). Por isso, a direção de arte do espetáculo impõe novas barreiras à audiência negativamente.

Os entraves no diálogo entre os vários elementos cênicos de “Ludwig/2” podem ser, por fim, resumidos pela alternância de idiomas durante a encenação. O alemão perfeito, sobretudo com a sonoridade característica da Baviera, dá lugar em vários momentos para o português sem justificativas. A trilha sonora de Daniel Belquer também faz esse tipo de concessão, unindo Wagner à MPB. A impressão negativa é de que os realizadores não acreditaram na força inicial de suas ideias e amoleceram frente às necessidades comerciais.

Manoel Madeira e Daniel Belquer em destaques positivos
“Ludwig/2” tem ótimos trabalhos de interpretação, principalmente de Manoel Madeira, que interpreta o protagonista. O modo como o ator dá conta do solilóquio final, esse de enorme dificuldade, é exultante e merece elogios como todo o seu trabalho. Com relação ao modo como Daniel Belquer alarga o espaço cênico através do investimento na experiência sonora é também excelente. Com vitalidade, Madeira e Belquer recheiam a peça com níveis que apontam para a profundidade do trabalho. No mesmo sentido, age o desenho de luz de Rodrigo Belay.

Apertados em concepções mais contraditórias, os atores Suzana Castelo (Sophie) e Andreas Mayer (Hornig) não tiveram as mesmas possibilidades mais férteis. Assim também os figurinos de Henrique Gonçalves e de Fernanda Sabino e o cenário de Linda Sollacher e de Karlla de Luca infelizmente.

Dentro do que se propõe, esse espetáculo, que marca o aniversário de uma célebre companhia, como a Artesanal, é positivo. Os maiores aplausos, no entanto, são direcionados à capacidade da produção de oferecer reflexões. Além disso, há o mérito de pautar a figura de Ludwig II, tão enigmática e tão fundamental, na programação de teatro carioca. Vida longa ao grupo! Parabéns.


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Ficha técnica

Concepção do Projeto: Gustavo Bicalho

Dramaturgia e texto: Gustavo Bicalho

Tradução: Lilli-Hannah Hoepner e Manoel Madeira

Elenco: Manoel Madeira, Suzana Castelo e Andreas Mayer (ator convidado)

Direção Artística: Gustavo Bicalho, Henrique Gonçalves e Daniel Belquer.

Desenho de Luz: Rodrigo Belay

Cenário: Linda Sollacher e Karlla de Luca

Figurinos e Adereços: Henrique Gonçalves e Fernanda Sabino

Direção Musical e Vídeo Mapping: Daniel Belquer

Programação e Trilha Sonora Adicionais: Caeso

Direção de Movimento: Paulo Mazzoni

Programação Visual: Andrea Batitucci

Fotografias: Nadaine Löes e Henrique Gonçalves

Produção: Gustavo Bicalho, Henrique Gonçalves e Manoel Madeira