sábado, 1 de fevereiro de 2014

Baseado na rua de trás (RJ)

Thiago Ristow, Nara Parolini, Mateus Tiburi e Carolina Ferman
em cena
Foto: divulgação

Muitos problemas de articulação

Apesar dos excelentes trabalhos de interpretação de Nara Parolini e de Carolina Ferman (ambas parte do elenco da peça “Sarau das Putas”), “Baseado na rua de trás” não atinge um bom resultado. A partir de texto de Mateus Tiburi, que também atua no espetáculo, e com direção de Gustavo Damasceno, a peça estabelece uma estrutura que não se ratifica e nem se auto-articula, parecendo várias peças dentro de uma só, no caso, negativamente. Tendo estado em cartaz na Sede das Companhias, a produção serve como objeto de boa reflexão e pouco além.

A história começa quando um homem, o senhor H (Thiago Ristow), vai ao médico (Mateus Tiburi) e esse lhe pergunta se ele fuma. Começa aí um prolongado diálogo em que o paciente se sente obrigado a dizer que, sim, que é fumante para, então, ouvir do doutor que ele precisa parar de fumar. A situação cômica inaugura, com essa cena inicial, o tom absurdo, mas não o desenvolve nas cenas seguintes. Antes de partir para elas, segue a descrição de outro problema (também de interesse para a reflexão): o paciente reclama ao médico que, sendo novo na cidade, não é bem tratado, pois ninguém fala com ele. O motivo é claro para o médico e sua enfermeira – o paciente não está vestido com a cor do dia. A enfermeira sai e volta trazendo uma camisa branca, que o paciente veste enquanto ouve que cada dia da semana tem uma cor e as pessoas na cidade só falam com quem está vestindo a cor do dia. Médico e enfermeira informam ao paciente que aquela cor é a cor de domingo, o dia seguinte: roxo. No momento em que paciente vê a camisa branca como o público a vê, público e personagem se identificam entre si e um código é criado. O público vai passar a ver a peça a partir dos olhos desse personagem e não dos outros, que verão uma camisa branca e acreditarão ser ela roxa. Com a saída do médico do consultório, paciente e enfermeira marcam um encontro para a 00h01, quando, então, poderão falar com ele, visto que ele estará usando a cor do dia. Na cena seguinte, que acontece em um bar, o público espera para ver todos da cidade, vestindo branco enquanto acreditam estarem vestindo roxo. Só que não é isso que acontece. Na sequência, ninguém veste nem branco, nem roxo e, mesmo assim, todos falam com o paciente. Além disso, a cena no bar é noir da trilha sonora aos personagens, dos diálogos fatais ao cenário. Referência ao cinema norte-americano dos anos 40, o noir é um gênero diferente do absurdo.

No bar, H (Ristow) reencontra a enfermeira (agora interpretada por Carolina Ferman) e seu marido (Tiburi) e os dois se beijam depois de uma cena em que H precisa escolher entre a enfermeira e outra mulher (Parolini). A cena seguinte se passa na casa de H, agora chamado Hugo, e de sua mulher Amélie, a ex-enfermeira. O diálogo é um drama tenso, em que a esposa confessa ao marido o seu tédio, as suas frustrações e, nisso, põe pra fora uma alta dose de perversidade para com a pequena filha do casal (Parolini). Ou seja, depois do absurdo e depois do noir, um terceiro tom aparece. E, nas cenas seguintes, novas mudanças, novos personagens, novos códigos. Assim, o processo cênico-dramatúrgico é gratuitamente de constante desconforto, pois, em linhas gerais, mantêm-se os nomes dos personagens, mas todo o resto é modificado e a história acaba por não ser nem bem contada por seus diálogos, tampouco pela estrutura teatral da narrativa.

Ristow e Tiburi apresentam trabalhos baseados na realização de tipos os quais não conseguem se localizar nessa história sempre mutante. Ferman e Parolini têm os méritos de conseguirem, apesar de todos os entraves, exibirem interpretações cheias de nuances, carregadas de possibilidades, integridade entre as expressões faciais e corporais, excelente uso do espaço, da voz e dos tempos. Mais uma vez, há grande prazer em assistir ao trabalho dessas duas atrizes.

Quanto aos demais elementos, a trilha sonora varia da coleta de filmes e músicas do repertório popular norte-americano, sendo todas elas bastante negativamente operadas. O figurino, assim como a peça de um modo geral, varia do realismo próprio do absurdo da cena inicial para o glamour da cena no bar. Na terceira cena, há o estereotipado vestido da filha do casal (Parolini), com um vestido rodado da mãe (Ferman) e uma composição realista de H (Ristow) de de forma que temos anos 50 e contemporaneidade ao mesmo tempo. O cenário é modesto, mas ele, de fato, não é o mais importante nem na narração, nem nos problemas de narração.

Diferente de quem escreve literatura, o escritor teatral tem, como palavras, os signos tornados teatrais. Dos movimentos às entradas de saída dos elementos, dos tons de voz dos atores, ao que dizem, ao como olham e ao como estabelecem as pausas, passando pelas músicas, pelos figurinos, pelo cenário e pelo encadeamento de sequências, esses são os advérbios, os artigos, os substantivos e os verbos do encenador. Infelizmente, esse discurso chamado “Baseado na rua de trás” tem problemas graves e, por isso, não consegue dizer a que veio.


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