Matías Chebel, André Curti e Artur Ribeiro interpretam os filhos em "Irmãos de sangue" |
Teatro, teatro, teatro!
“Irmão de sangue” é o melhor espetáculo de teatro em cartaz no Rio nos últimos meses pela propriedade com que o teatro é usado em cena. A frase parece estranha, mas não é. A teatralidade é como os teóricos chamam o tipo de marca linguística que informa o espectador de que o que ele está vendo não é outra coisa que não teatro. Novo espetáculo da Companhia Dos à Deux, “Irmão de sangue” está no mesmo nível das montagens de “O Idiota – uma novela teatral”, dirigido por Cibele Forjaz, e de “O idiota”, dirigido pelo lituano Eimuntas Nekrosius, ou seja, em altíssimo grau. Falando sobre a relação entre irmãos, sobre laços familiares e, principalmente, sobre o tempo que não pára de passar, a peça se constrói através de um uso singular de diversos elementos que se tornam cênicos, se tornam teatro e fazem ver, de quase nada, um muito arrebatador. A produção está em cartaz no Teatro 1 do Centro Cultural do Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, e é imperdível.
A narrativa desenvolvida em cena é tão fluída como o teatro é e aí está apenas o princípio de uma série boas articulações. No palco, vemos uma família composta pela mãe e três filhos, todos eles com idades muito próximas, todos crianças. O conflito, que dá força para a assistência continuar no seu ofício de assistir, é o tempo que insiste em passar e a certeza de que aqueles garotos crescerão, como nós também crescemos, estabelecendo e ratificando uma cartarse (quando se purgam as próprias emoções a partir de motivos alheios) que se sustenta durante toda a apresentação positivamente. Sem que palavra alguma seja dita ao longo dos 90 minutos, a história se conta e é contada com o advento ininterrupto de novidades que não substituem, mas acrescentam. Cada cena surpreende, cada gesto é coberto de graça, de carisma e de conteúdo. A peça, que tem dramaturgia, cenografia e direção assinada pela dupla André Curti e Artur Ribeiro, não perde uma só oportunidade de se comunicar, estabelecendo e ratificando uma infinda rede de significados (semiose), cuja potência vale o elogio aqui pelo alto nível de beleza e harmonia. Quando, de um tailleur vermelho, brotam cordas igualmente vermelhas, vemos os laços (talvez, sanguíneos) que unem os filhos à mãe e entre si. Quando, dos bolsos de uma cadeira, brotam cachorrinhos de brinquedo, vemos os limites na convivência, mas também diversão e leveza na narrativa.
A personagem da Mãe é interpretada por Cécile Givernet. Quando a peça começa, vemos seu papel ser expresso por um boneco, representando a sua velhice. Para exemplificar (e justificar) a avaliação positiva desse trabalho, essa escolha traz a possibilidade de uma intenção clara e perfeitamente manifesta. O boneco é um instrumento narrativo forte, mas principalmente lúdico. Ele abre a fechadura da imaginação e, no caso de uma narrativa sobre os laços familiares da infância, esse lugar semântico em qual se adentra é fundamental. Do ponto de vista da auto-referenciação, o boneco aparecerá novamente em cena em outro momento e aí estará ao lado da atriz. A Mãe estará, ao mesmo tempo, enquanto jovem e enquanto velha, lado a lado. Com isso, nova ponte artítico-comunicativa se faz: não abandonamos a infância para nos tornar adultos, nem a adultez pela velhice, mas as idades se juntam umas às outras, todas presentes em nós. Outra citação: a peça começa com dois homens, um de frente para o outro, encarando-se enquanto a base sobre a qual ambos estão gira. Quanto mais rápido gira, mais eles se aproximam do centro, um do outro. A cena inicial termina com um abraço entre ambos. A infância é um ciclo, as relações são cíclicas, o tempo não pára e, talvez aqui, esteja aqui o mais importante significado de “Irmãos de sangue”.
A larga criatividade do grupo faz surpresas aparecerem sem pausa e em ritmo cada vez mais vibrante de forma a cumprir o dificílimo objetivo de alimentar um público cada vez mais faminto ainda que cada vez mais alimentado. Os jogos entre os filhos, o cansaço da mãe e sua solidão. Os filhos lembrando das cenas de brigas entre os pais, fazendo a crítica e se divertindo com essas memórias (sem algum juízo de valor sobre o acontecido). Eis aí alguns dos quadros a que se assiste em "Irmãos de sangue".
Da trilha sonora (musica original de Fernando Mota) às contribuições do desenho de luz (Bertrand Perez e Artur Ribeiro), o espetáculo se apresenta com uma estrutura complexa, porque cheia de níveis. Extremamente bem articulada, porque com excelentes recursos de auto-referenciação. Sensível, porque discute um tema que atravessa todos e não apenas aqueles que tiveram irmãos ou com eles conviveram durante a infância. É fato inaferrável que, a cada ano que passa, cada um de nós tem menos contato com aqueles que foram testemunhas, e não apenas ouvintes, das nossas memórias mais antigas. E, se fazer relações é difícil, mantê-las através dos anos é um grande desafio. Gritos de bravo!
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Ficha técnica:
Dramaturgia, cenário, coreografia e direção: André Curti e Artur Ribeiro
Interpretação: Cécile Givernet, Matías Chebel, André Curti e Artur Ribeiro
Música original Fernando Mota | Violino: Fran Lasuen
Figurinos e marionetes: Natacha Belova
Acessórios, peruca e objetos: Maria Adélia et Marta Rossi
Com assistência de Morgan Olivier e Camila Moraes
Construção do cenário e contra-regra: Demis Boussu
Iluminação: Bertrand Perez e Artur Ribeiro
Direção de produção -França : Nathalie Redant
Direção de produção - Brasil: Sérgio Saboya | Teaser -Vídeo: Jean Luc Daniel
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