sábado, 8 de fevereiro de 2014

Tempo real (RJ)

Diana Herzog e Alonso Zerbinato em cena
Foto: Bruno Mello

Só experimentação sobre o tempo atual

“Tempo real” é um experimento que vale enquanto experimento teatral e apenas isso. O mote que levou o Grupo Teatro Voador Não Identificado a investir nesse projeto é interessante: tentar utilizar-se da internet para catalisar os fatos que estão acontecendo no mundo no momento da peça. Entende-se, por princípio, que isso deveria ser a peça, mas não é. Na dramaturgia de Julia Bernat, em vários momentos, é nítido que os intérpretes/performers se cansam da investida no improviso e se curvam à narrativa tradicional, previamente concebida. Desses trechos, três são muito bons: quando Alonso Zerbinato narra algumas histórias de seu pai a partir de uma foto familiar, quando surge a história de Paul Cole (o homem que aparece na capa do disco Abbey Road, dos Beatles) e quando Zerbinato narra o momento de um homem que, tendo bebido antes de dirigir, atropelou uma pessoa e se viu, de repente, envolvido em uma tragédia. Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado, na Gávea, o espetáculo pode ser ponto de reflexão para os conceitos de realidade e de espetacularidade.

De um modo amplo, “Tempo real” parece querer ser um belo argumento sobre viver as coisas mais intensamente e sobre prestar a atenção na forma como as coisas se dão a ver em momento específico. Ao contrário do que se pensa, real não é o contrário de virtual, mas o oposto de irreal. Assim, o termo “real” no título da peça, então, quer dizer “atual”, palavra que remete ao aqui e ao agora com muito mais força, lembrando que esse aqui e agora não querem dizer contemporâneo, pois podem haver aqui e agora nos anos 70, por exemplo). Ou seja, em termos teóricos, a produção parece querer se voltar para um tipo de recepção teatral que Brecht chama de épica, isto é, aquela que é contrária à catártica, porque exige que o espectador não se perca em pensamentos, mas permaneça consciente e ativo. Retomando os três melhores momentos da encenação já citados, uma noite em que garotas tomam banho de piscina nuas, um dia em que um homem conversa com policiais e uma madrugada em que uma pessoa bebe além da conta podem se tornar o início de um longo casamento, a capa de um disco mundialmente famoso e um crime que resultará em anos de prisão e no falecimento de alguém. Daí a necessidade e a importância de valorizar os momentos sejam eles quais forem. Fossem apenas essas três histórias e fossem elas articuladas de forma mais clara, o objetivo dessa montagem seria, talvez, mais plenamente atingido. Infelizmente, ele não é.

Na abertura de “Tempo real”, Alonso e Diana (de propósito, os nomes dos personagens são iguais aos nomes dos atores, o que é uma das marcas de performance.) lêem um Ipad, colhendo as notícias do mundo mais recentes. Aparecem os aniversariantes do dia, os falecidos do dia, aqueles que nascem no dia, o que o dia significa na história do mundo ocidental, etc. Trazem a previsão do tempo, vídeos de câmeras públicas em trechos do trânsito da cidade do Rio de Janeiro e lêem o horóscopo, o próprio e o do público. Alonso diz ser de Touro e Diana de Escorpião. Nesse contexto inicial, o espetáculo apresenta-se como uma espécie de uma revista contemporânea, em que os fatos do dia se transformarão em uma peça, mas, embora tudo indique que será isso, não é isso que acontece, pois Alonso começa a contar que conheceu Diana em uma aula de View Points e, ao falar com ela pela primeira vez, os dois perceberam que estavam de aniversário naquele dia que, com a distância de anos, é justamente o dia de hoje. No caso dessa análise, a peça foi apresentada no início de fevereiro de 2014. Ora, quem nasce nesse período é aquariano, nem taurino, nem escorpionino, ou seja, o público tem acesso ou a um outro contexto cênico-narrativo ou a uma contradição em relação à proposta inicial dos fatos que estão verdadeiramente acontecendo no mundo além do teatro. Enquanto a plateia pensa sobre isso, ela se desvincula do espetáculo pela primeira vez e, infelizmente, passará por isso em outros trechos. Na continuidade, há uma nova quebra na estrutura, e outra, e outra, e outra, sem que nem todas elas realmente desenvolvam o tema inicial ou tampouco retornem a ele. E aí chegamos ao conceito de espetacularidade.

Na performance, o limite entre o que é personagem e o que é ator é bastante sutil e essa é a sua principal marca. “Tempo real” acontece em um teatro de arena com as luzes da plateia acesas durante todo o período da encenação, oferecendo, assim, outra marca que aponta para essa leitura. O problema é que a performance, embora seja um tipo de texto teatral, tem, na sua gênese, uma grande relação com as artes visuais, uma vez que surgiu contemporaneamente a partir do fim das molduras, da quebra dos museus, da liberdade dos artistas plásticos em pesquisar outras formas de expressão. Em outras palavras, o conceito de espetacularidade que existe no teatro convencional também existe no teatro performático em função da poética que está por trás da mímesis, essa comum a ambos. “Tempo real”, apesar de alguns esforços, e a cena da lua é um deles, carece de lirismo, pois não se decide se fala  sobre notícias e consciência ou se conta histórias através de rapsódia tradicional. As atuações de Alonso Zerbinado e de Diana Herzog são pouco seguras, o colorido das listas no chão não tem, nem beleza, nem função comunicativa clara, a iluminação age pelo mesmo caminho, o cenário é inexistente, o figurino é duvidoso e a trilha sonora é pouco rica. Ou seja, enquanto estrutura, é um espetáculo ruim.

Com direção de Leandro Romano, “Tempo real” parece ser uma experimentação de jovens artistas, todos eles já com carreira sólida e que, apesar disso, não perderam felizmente o viço, a coragem, o prazer da interrogação. Nesse sentido, o teatro carioca aqui vai bem. 

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