sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Marca da Água (RJ)

Foto: divulgação

Um ótimo espetáculo na cena carioca

Assistir a “A Marca da Água” é um prazer imenso. O espetáculo é delicado, puro, lúdico em todos os sentidos. O surrealismo da forma de narrar a história de Laura se torna poesia-brincadeira, doce como Mário Quintana, natural como Manuel de Barros. A direção, com uma concepção bem clara, impregnou todos os elementos então tornados teatrais do mesmo espírito, de forma que o todo produz uma imagem coerente, coesa, com uma estrutura sólida que encanta, diverte e emociona. Em cartaz na Fundição Progresso, o espetáculo comemora os 25 anos de trabalho do Armazém Companhia de Teatro, grupo que nasceu em Londrina, no Paraná, mas que agora está instalado na capital carioca. 

Distante dos moldes tradicionais, o conflito que move a narrativa está na personagem Laura (Patrícia Selonk) fazer o marido Jonas (Marcos Martins) aceitar o fato de que ela não quer fazer nenhum tratamento médico, nem tampouco tomar nenhum remédio, mas continuar sentindo os sintomas estranhos que a fazem perder a noção da realidade, preocupando o companheiro que estranha seu novo comportamento. Segundo ela, esses sintomas a fazem sentir-se viva. Na dramaturgia de Maurício Arruda de Mendonça e de Paulo de Moraes, o passado serve como (mero) argumento (literário e imagético) para essa situação de confronto de casal e só consegue bons resultados pela habilidade com que o texto e a encenação foram tão bem viabilizados, visto que esse problema dramatúrgico é a priori bastante frágil. Quando criança, numa brincadeira com o irmão (Marcelo Guerra), Laura bateu com a cabeça e, durante seis anos, sofreu três cirurgias complicadas na região do cérebro em função desse acidente. Anos depois, pais mortos e irmão esquecido, os sintomas desse sofrimento retornam no dia em que um enorme peixe aparece “do nada” na casa de Laura e de Jonas (o personagem bíblico Jonas passou três dias e três noites no interior do ventre de uma baleia), a quilômetros de distância do mar. Nesse momento, Laura passa a ouvir uma música que só ela escuta, uma canção que ela quer captar, prender, vive-la e que passa a ser o sentido de sua vida. Preocupado com a esposa, Jonas teme pela sanidade de Laura, que começa a perder a memória, a noção do tempo, do espaço e da realidade. Na verdade, a personagem inicia aí uma viagem para dentro de si mesma. 

Sensivelmente interpretado por Patrícia Selonk, o espectador viaja pelo interior das visões de Laura. A relação com o pai (Ricardo Martins), com a mãe (Lisa E. Fávero), com o irmão, com o marido e consigo própria vai sendo dividida com a plateia que brinca nesse espaço cheio de imagens projetadas, brincadeiras num tanque de água, mergulhadores, sons de acordeon e de caracóis. As cenas são rápidas, o ritmo é extremamente bem conduzido, as situações são delicadas e potentes: os mergulhos, a trilha sonora original e interpretada ao vivo (a direção musical é de Ricco Vianna), a limpeza do cenário de Paulo de Moraes, a riqueza de possibilidades do figurino de Rita Murtinho, a ludicidade no melhor do gênero surrealista no desenho de iluminação do grande Maneco Quinderé, os belos vídeos tão inteligentemente criados e editados pela dupla Rico e Renato Vilarouca e, sobretudo, pelos trabalhos de interpretação tão discretos e não menos vivos do elenco bastante bem dirigido. 

Em todos os seus aspectos, destaca-se em “A Marca da Água” a coerência que une os elementos cênicos em um todo único e forte, em uma estrutura capaz de não deixar dúvidas e nem criar espaços para o espectador atento, mas disposto a se entreter sem deixar de refletir. A vida pode ser uma viagem para dentro de si mesmo. O mundo, afinal, pode ser uma boa metáfora para o universo particular de cada um dentro das lembranças construídas e futuramente criadas. Uma ótima produção na cena carioca, sem dúvida. 

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Ficha técnica:

Elenco:
Patrícia Selonk
Ricardo Martins
Marcos Martins
Marcelo Guerra
Lisa E. Fávero

Direção: Paulo de Moraes
Dramaturgia: Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes
Direção Musical: Ricco Viana
Cenografia: Paulo de Moraes
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurinos: Rita Murtinho
Videografismo: Rico e Renato Vilarouca
Preparação Corporal: Patrícia Selonk e Laura Noronha
Cartaz: Jopa Moraes
Projeto Gráfico: Alexandre de Castro e Jopa Moraes
Fotografias: Mauro Kury
Assistente de Produção: Fernanda Camargo
Produção Executiva: Flávia Menezes
Produção: Armazém Companhia de Teatro

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