Uma peça de arte
“Homens, santos e desertores” é um grande espetáculo por vários motivos. O texto é um dos melhores de Mário Bortolotto, a direção de Ernesto Piccolo é pontual e segura e as interpretações de Ricardo Blat e Nelson Yabeta são sensíveis e, ao mesmo tempo, fortes. O resultado final, no Espaço Cultural Furnas, é primoroso.
Escrito há dez anos, com razão se repete a máxima de que, em “Homens, santos e desertores”, Bortolotto chega à maturidade como dramaturgo. Autor de mais de cinquenta peças, “Nossa Vida Não Vale Um Chevrolet” inclusive, seus textos se caracterizam por um universo marginal, cujos personagens estão no limite de suas existências tentando, na medida do possível, marcar sua passagem por aqui de alguma forma ainda que confessem extremo desprendimento. Os diálogos geralmente expressam uma situação desgastada, como se não valesse a pena ir a diante. Daí vem a imagem pessimista do mundo que reflete a humanidade tão cara nas palavras de cada uma de suas frases. Tudo isso se vê nesse texto, mas em doses mais profundas. Um homem mais velho recebe em sua casa o filho adolescente de um amigo. Ambos solitários, ambos amantes da boa literatura, ambos diante de seus próprios universos, embora cada um o veja de um lado diferente. Os encontros, marcados pelas entradas, mas nem sempre terminados com saídas, são retalhos de uma relação que se aprofunda, se converte, se modifica, mas, mais ainda, exibe um para o outro e cada um para si mesmo. O mais jovem pode ser o mais velho no futuro. O mais velho pode ser também o mais jovem no futuro. Os universos podem ser iguais, mas podem manter as suas idiossincrasias. Na plateia, resta um “bolo” na garganta, como se o palco fosse ao mesmo tempo um espelho real e um espelho invertido, ora um, ora outro.
Ernesto Piccolo marca o tempo com um olhar sobre o horizonte, definindo assim o lugar cênico da humanidade. Ao olhar para frente, os personagens, talvez, olhem para dentro de si. Por sua vez, no traço, os atores olham para a plateia, pois somos nós que estamos no horizonte do palco. As pausas dão ritmo, embalam o tempo nesse espaço que não muda ao longo da narrativa. As palavras são ditas de forma cuidadosa, mas a retórica é próxima do real além da história de Bortolotto. Ricardo Blat e Nelson Yabeta garantem essa proximidade. São fortes, ágeis e mantêm-se entregues ao texto, aos personagens, às diferentes situações. O resultado emociona sem melar, é cáustico sem ser ofensivo, é humano sem parecer artificial. Um convite para entrar dentro de si e ver-se diante do próprio universo.
O cenário de Sérgio Marimba, a iluminação de Tiago Mantovani e o figurino de Débora Mazloum acertam porque apontam para os diálogos e para a construção dos personagens, sem dúvida, as partes mais importantes da obra. A trilha sonora de Rodrigo Penna auxilia a direção não só na construção do ritmo, mas na caracterização de um objeto cuja boa fruição exija cuidado e delicadeza. “Homens, santos e desertores”estreou em outubro de 2010 e segue agora cumprindo uma bela passagem que, sem dúvidas, deixa boas marcas no teatro brasileiro.
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Ficha técnica:
Texto: Mário Bortolotto
Direção: Ernesto Piccolo
Elenco: Ricardo Blat e Nelson Yabeta
Cenário: Sérgio Marimba
Figurino: Débora Mazloum
Iluminação: Tiago Mantovani
Trilha Sonora: Rodrigo Penna
Diretora Assistente: Isabel Lobo
Assessoria de Imprensa: Bruno Pacheco
Programação Visual: Rafael Ferrão e Daniel Gnattali
Cenógrafa Assistente: Claudia Torres
Operação de Luz: Bruno Peixoto
Operação de Som: Adriana Vieira
Produção Executiva: Adriana Vieira
Direção de Produção: Clarissa Menezes e Nelson Yabeta
Realização: Casa dos Azulejos Produções Artísticas e Culturais Ltda
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