Foto: divulgação
Adaptação equivocada, encenação difícil
Em cartaz na Sala Paulo Pontes do
Theatro Net Rio, “A Moringa Quebrada” é uma adaptação mal feita de “A bilha
quebrada”, texto do dramaturgo alemão Heinrich von Kleist (1777-1811), escrito
em 1806 e encenado pela primeira vez dois anos depois. Dirigido por Gustavo
Paso, que também assina o excelente “Em Nome do Jogo”, o espetáculo tem apenas
um ponto realmente positivo, além, claro, do mérito universal de ser produzido:
a interpretação de Claudio Tovar. Claramente disposto a atualizar o texto
original para Ariano Suassuna, o resultado fica paralelo a “As Conchambranças
de Quaderna”, sem, nem de longe, se aproximar da fluidez do dramaturgo
paraibano. Falta ritmo na versão escrita traduzida por Marcelo Backes e escrita
por Paso.
Resistindo ao romantismo alemão, em voga
no teatro e na literatura na época do seu lançamento, a obra se apresenta como
uma comédia ainda com bastante influência do gênero farsesco. Com isso se quer
apontar que a situação dramática privilegia a cristalização das figuras que,
estando enrijecidas, são responsáveis pela evolução rápida da narrativa no
processo de desenredamento das tramas e subtramas em que a história se
estrutura. Na versão original, em um tribunal, o Juiz, seu Escrivão e o
Meirinho aguardam a chegada de um Desembargador. Quando esse chega, atende-se
ao primeiro caso do dia: o caso da bilha (jarra) quebrada. Dona Martha é mãe de
Eva que é noiva de Ruprecht que é sobrinho de Brígida. A peça de
cerâmica se espatifara no chão quando Ruprecht encontrou um homem no quarto de
Eva em certa noite passada. Não se sabe quem é esse homem, mas, desde então, o
noivado foi desfeito. Eva, então, está triste pelo fim do namoro, Martha, por
sua vez, está revoltada com a sua relíquia quebrada e Ruprecht afirma não ser o
responsável pelo desastre, mas quer saber quem o foi. Brígida, enfim, é chamada
para testemunhar e o Desembargador acompanha a resolução no intuito de avaliar
o procedimento do Juiz, cujo cargo é ambicionado pelo Escrivão. Como se vê,
trata-se de um texto em que todos os personagens são movidos por conflitos
internos que os ligam ao todo da narrativa por sua própria natureza (egoísmo,
sensibilidade, ambição, avareza, etc), essa de aparência independente da
situação específica em que todos se encontram. “A bilha quebrada”, assim, está
próxima, enquanto farsa, de sua ascendente Commedia Dell Arte, uma vez que, no
texto de meados do século XIX, os personagens do gênero moderno-renascentista
podem ser facilmente encontrados: o casal de Enamorados (Eva e Ruprecht), o
Brighella (o Escrivão Licht), a Colombina (o Meirinho), o Dottore (o
Desembargador Walter) e o Pantaleão (o Juiz Adão e a Dona Martha), todos
pertencentes à tradição teatral italiana. Codificados e com muitas indicações
que são necessárias (e bem vindas) à boa fruição de uma obra desse tipo, a
condução nesse sentido “facilita” a vida do espectador na medida em que o
dispensa de maiores apresentações acerca de quem participa da história,
convidando a plateia para que se vá direto ao ponto, ou seja, a história em si.
A adaptação para “A Moringa Quebrada”
diminui prejudicialmente a distância entre os diálogos originais e o público.
Diante do texto de Kleist, o espectador sabe que está lendo/assistindo a uma
comédia, mas sabe também o traço cômico não está nos diálogos, mas no aparecer,
desenrolar e concluir das tramas. Paso leva os diálogos para a fictícia cidade
de Upa Cavalo, no sertão nordestino, desenhando com detalhes ricos cada frase e
as sonoridades das palavras dela. Sem dúvida, o esforço é valoroso, mas, em
cena, resulta numa fruição pesada, cansativa, que prejudica as situações, faz
arrastar toda a narrativa.
De um modo geral, as interpretações são
sofríveis. Há muito grito, muita força e pouco movimento. Com mais técnica do que
verdade, falta leveza em Samir Murad (Conselheiro Magno). Apresentando um bom
trabalho, o elenco conta com a participação de Felipe Miguel (Robério Cacimba),
mas o grande nome do grupo é mesmo Cláudio Tovar (Juiz Adão), porque, com muito
esforço, ele consegue driblar o embaraçoso texto, mantendo uma excelente
dicção, e oferecendo um certo ritmo.
O cenário do diretor Gustavo Paso e de
Teca Fichinski é interessante em vários pontos e negativo em outros. Sua
riqueza se mostra no fundo de caixas de arquivo, púlpito e mesa do escrivão,
oferecendo vários níveis de altura e de profundidade. Na parte direita, no
entanto, os bancos prejudicam uma possível movimentação, diminuindo as
alternativas da direção. Junto com a adaptação e as interpretações, o figurino
e a trilha sonora são os piores elementos da encenação. Concebidos por
Fichinski, não se justificam a larga exploração do verde em quase todas roupas, repetindo o tom dominante do cenário, e a maquiagem carregada que colabora negativamente no peso já dado pelo texto. Não se entende também porque os homens
usam vestidos ou porque as mulheres estão com os cabelos desgrenhados. A iluminação de Paulo David Gusmão é boa porque oferece alguns supiros interessantes ao público em meio à narrativa. A trilha
sonora de Luciana Fávero e de Felipe Miguel, sobretudo no momento final, é
igualmente injustificável na proposta de adaptação.
Dada a liberdade de alterações que todo
artista tem na hora de transpor uma obra (o texto de Kleist é literatura) de
uma origem para outra, há que se analisar o caso pensando no público. Se “A
Bilha Quebrada” é considerado difícil para o público de hoje, “A Moringa Quebrada”
não é nada fácil.
*
FICHA TÉCNICA
Texto: Heinrich von Kleist | Tradução: Marcelo Backes | Direção e Adaptação: Gustavo Paso | com Claudio Tovar, Samir Murad e CiaTeatro Epigenia: Antonio Barboza, Barbara Werlang, Felipe Miguel, Luciana Fávero, Monica Vilela, Suzana Castelo, Thalita Vaz e Thiago Detofol | Cenário, Figurinos e Caracterização dos Personagens: Gustavo Paso e Teca Fichinski | Iluminação: Paulo David Gusmão | Trilha Sonora: Gustavo Paso e Caique Botkay | Assessoria de Imprensa: Ney Motta | Direção de Produção: Luciana Fávero | Produção Executiva: Júnior Godim | Realização: PASO D'ARTE e CiaTeatro Epigenia
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