Foto:
divulgação
Quem
perde na luta contra os girassóis
Os seis mil girassóis artificiais
que colorem o Teatro Glaucio Gil são o maior valor da montagem de “A Gaivota”,
dirigida por Bruno Siniscalchi, mas, ao mesmo tempo, a sua desgraça. O
resultado visual, que é impressionante, vence uma inútil (mas real) luta
sensorial pela atenção do espectador. Perde Tchekhov, perde o elenco, perde a
ficha técnica. O público sai banhado de amarelo e não muito além disso, mesmo
certo de que vivenciou uma experiência estética interessante. O resultado da
experiência é positivo (enquanto experiência artística), mas negativo enquanto
objeto de arte. Em cena, não se justifica a concepção visual.
A única relação que a análise
consegue vislumbrar que justifique o cenário e o figurino desta montagem de “A
Gaivota” é uma possível conversa entre os contemporâneos Van Gogh (1853-1890) e
Tchekhov (1860-1904). No release do espetáculo, destaca-se a seguinte citação:
NINA:
É difícil representar a peça que você escreveu.
Não tem personagens vivos.
TREPLIOV:
Personagens
vivos! Não se deve representar a vida do jeito que ela é, nem do jeito que
devia ser, mas sim como ela se apresenta nos sonhos.
NINA:
Na
sua peça, há pouca ação. É só declamação do início ao fim.
E, para mim, uma
peça precisa ter amor...
Apesar do erro ser bem vindo do
ponto de vista da experiência, ainda sim, é um equívoco. O pintor holandês Van Gogh é
impressionista e o dramaturgo russo Tchekhov realista psicológico. Apesar de
viverem na mesma época, suas obras são representativas de gêneros estéticos
diferentes e, em vários pontos, opostos. No impressionismo, a realidade é vista
a partir do olhar o artista, de suas emoções enquanto capaz de reproduzir ao
seu modo o mundo que toca. No realismo psicológico, a realidade é julgada a
partir do olhar do personagem, sua moral, sua ética, seus valores. Nos diálogos
de “A Gaivota”, escrita em 1896, há muito pouco de lisérgico, mas, em
contrapartida, uma altíssima dose de crítica: ao formalismo racional da arte,
ao comportamento dos atores, à vida na cidade, às relações humanas, sobretudo,
familiares. Apesar do elenco valoroso desta montagem, cujo esforço é visível,
nada disso chega até o público com facilidade em função do muro amarelo que se
interpõe nela.
Gabriel Pardal (Trepliov), Carla Ribas (Arkádina) e Karine
Teles (Macha) lideram os bons trabalhos de interpretação do grupo pela boa
dosagem das pausas, pelo equilíbrio das emoções, mas, sobretudo, por apresentar
maior esforço em não confundir retórica realista com banal. De uma forma geral,
no entanto, há que se dizer que não há trabalhos que possam ser justamente
avaliados como ruins nessa produção de “A Gaivota”, devido a, como já se disse,
valorização suprema do elemento cenográfico.
Porque o figurino de Maíra Senise e
a iluminação de Thales Coutinho (com supervisão de Paulo César de Medeiros) não
oferecem nenhum escape ao olhar do espectador, o resultado do uso desses
elementos é igualmente negativo. A trilha sonora, de Domenico Lancellotti,
combina positivamente temas especialmente compostos para instrumentos acústicos
tradicionais, como o violão e o piano, acompanhando a sutil narrativa com uma
certa elegância bem vinda.
Impressionismo, Realismo
Psicológico, Romantismo, Classicismo, etc, não são e não podem ser vistos como
prisões. A arte deve permanecer livre, tão livre como aqueles que a dão a ver.
O estudo do gênero só tem valor enquanto instrumento de análise da obra feita
e, para que a obra seja feita, é preciso valorizar quem a faz. Nesse caso, é
preciso valorizar o experimento proposto pela adaptação assinada por Marcela
Oliveira e pelo diretor Bruno Siniscalchi. E, ao mesmo tempo, lhes perguntar:
onde está o valor de Tchekhov?
*
Ficha Técnica:
DE Anton Tchekhov
TRADUÇÃO Rubens Figueiredo
CONCEPÇÃO E D IREÇÃO Bruno Siniscalchi
COM
Carla Ribas (Arkádina)
Gabriel Pardal (Trepliov)
Ivor Lancellotti (Sórin)
Julia Lund (Nina)
Karine Teles (Macha)
Ricardo Gonçalves (Trigórin)
Thales Coutinho (Miedviediênko)
CENOGRAFIA Bruno Siniscalchi e Carla Juaçaba
FIGURINOS Maíra Senise
ILUMINAÇÃO Paulo César Medeiros e Thales Coutinho
TRILHA SONORA Domenico Lancellotti
Muito bem Rodrigo. Faço minhas as suas palavras.
ResponderExcluirParabéns pelo crítica, pelo discernimento em relação a mistura de gêneros e seus desdobramentos.
Fica a mesma afirmação sobre o valor da criação e mesma pergunta sobre o valor de Anton Techekhov.
Guggo Morales