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Foto: divulgação
Ronan Dempsey (à direita) |
Esperando pela volta de Godot
No fim do último inverno, apresentou-se no Rio de Janeiro a excelente montagem irlandesa de “Esperando Godot”, obra prima de Samuel Beckett (1906-1989). Escrito no fim dos anos 40, o texto é uma das obras mais fundamentais da história do teatro ocidental. Dirigida por Patrick Sutton e com Charlie Hughes e Patrick O'Donnell no elenco, a montagem foi assinada pela companhia Smock Alley-1662. Essa curtíssima temporada no CCBB foi a primeira desse grupo por aqui e aconteceu marcando as quatro décadas de relações diplomáticas entre o Brasil e a Irlanda.
O vazio e a beleza de Vladimir e Estragon
O texto de “Esperando Godot” é um dos melhores momentos da dramaturgia do século XX. Em resumo, os protagonistas Estragon (Gogo) e Vladimir (Didi) são dois homens esperando por um terceiro chamado Godot, com quem eles querem uma entrevista. De alguma forma, eles acreditam que essa oportunidade possa lhes oferecer uma melhora em suas vidas: pelo menos, um lugar quente onde possam dormir. Enquanto esperam, surgem mais dois personagens: Pozzo e seu dono Lucky. A relação entre eles é cheia de brutalidade, selvageria e bizarrice, que se modifica sensivelmente quando eles reaparecem. O panorama que a peça descortina é uma terrível visão, talvez ainda pior para o público. Dela, em paradoxo, é possível reencontrar a vasta beleza do ser humano.
O vazio do palco e a poética existencial de dois seres cuja vida ganha sentido no ato da espera (por algo que não vem) são dois traços marcantes na obra. A liberdade que se apõe à prisão, e Gogo e Didi estão presos em um tempo que não passa, associa essa obra aos conceitos mais fundantes sobre tragédia. Os diálogos, principalmente aqueles que falam sobre deus e sobre Cristo, empurram a audiência para o que há de mais humano em suas presenças clownescas. Toda a situação, lida como absurda por muita gente, fisga apesar da não evolução do tempo, da não troca do espaço, da negação das bases mais sólidas da teoria da narrativa.
Célebre também por “Fim de partida” e por “Dias felizes”, que foram escritos depois, a tragicomédia “Esperando Godot” fez Samuel Beckett famoso pelo mundo. A falência da sociedade, na Europa do pós-guerra, se via nas ruínas por toda a parte: nos milhares de mortos e de desaparecidos, na falta de graça, na grande pobreza. Em 1953, em Paris, quando “En Attendant Godot” foi apresentado pela primeira vez, o sucesso foi arrebatador. Depois, Londres, Nova Iorque e o mundo. Em 1969, Samuel Beckett ganhou o Prêmio Nobel de Literatura.
Emanuelle Corinaldi, Luiz Eugênio Barcellos, Geraldo Mateos e Eduardo Waddington |
Em 1955, no Brasil, Alfredo Mesquita dirigiu uma montagem com alunos da Escola de Arte Dramática da USP, entre os quais estavam: Luiz Eugênio Barcellos, Emanuelle Corinaldi, Geraldo Mateos, Eduardo Waddington e Alceo Nunes. A primeira montagem brasileira profissional aconteceu em 1969, dirigida por Flávio Rangel e com Walmor Chagas (Vladimir), Cacilda Becker (Estragon), Carlos Kroeber (Pozzo), Carlos Silveira (Lucky) e Luis Carlos Martins (Menino). Entre o primeiro e o segundo ato da sessão de 6 de maio de 1969, a peça foi interrompida. A grande Cacilda Becker havia sofrido um aneurisma cerebral do qual veio a falecer em junho seguinte.
Cacilda Becker e Walmor Chagas |
A fiel encenação de Smock Alley
A encenação de Smock Alley merece elogios principalmente pelo modo como viabiliza as intenções do autor quanto à montagem desse texto clássico. Nas interpretações, o melhor e o pior do ser humano se encontram nas construções, em cujo ritmo, corpo e relações sugerem a complexidade do homem no âmbito de suas contradições. A direção de Patrick Sutton sustenta o pensamento por trás de cada frase do diálogo, mas consegue fazer com que as conversas pareçam acontecer em um ambiente natural. O espetáculo é excelente.
As interpretações são sensíveis, potentes, ricas em cada nuance de possível significado. Os protagonistas Charlie Hughes (Vladimir) e Patrick O”Donnell (Estragon), assim como Ronan Dempsey (Pozzo), Simon Stewart (Lucky) e como Torsten Brescanu (Menino), aproveitam cada possiblidade de expressar a riqueza de seus personagens palhaços-vagabundos. Neles, é possível identificar o lugar de margem onde vivem: uma encruzilhada de valores contra a qual a sociedade burguesa reage.
São conhecidas as instruções rígidas que Beckett impôs às montagens de seus textos. Cada ponto de discordância, por isso, é um gesto de rebeldia. Com exceção do significativo cenário de Brian Maguire, que leva a abordagem para o abstrato, toda a encenação parece ser bastante fiel. Em tudo, há o flerte com o vaudeville, com o realismo, com o trágico e/ou com o romântico, ratificando as justificativas que fizeram dessa peça um clássico no teatro internacional. A luz é de Colm McNally.
Volte sempre!
Sobre essa montagem, dada a sua excelência, foi uma pena que não tenha ficado mais tempo em cartaz. Que volte sempre!
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Ficha técnica:
Texto: Samuel Beckett.
Direção: Patrick Sutton.
Elenco: Charlie Hughes, Patrick O'Donnell, Simon Stewart, Ronan Dempsey and Torsten Brescanu.
Produção: Cliona Dukes
Produção executiva: Antonio Mendes (Irlanda-Brasil)
Designer de iluminação e gerente de produção: Colm McNally
Cenários: Brian Maguire
Realização: Embaixada da Irlanda no Brasil e Consulado Geral da Irlanda em São Paulo
Apoio: Centro Cultural Banco do Brasil, Hotel Novotel, Cultura da Irlanda (Culture Ireland), Departamento de Relações Exteriores e Comércio (The Department of Foreign Affairs and Trade), Conselho Irlandês de Artes (The Irish Arts Council) com apoio adicional da Escola de Artes Cênicas Gaiety (The Gaiety School of Acting), John McMahon, Caroline Downey, John McColgan eMoya Doherty e Patrick Sutton-Smock Alley Theatre.