A constância de Ariel Farace
“Constanza muere” é o novo espetáculo com texto e direção do dramaturgo argentino Ariel Farace, cuja estreia mundial aconteceu no Rio de Janeiro, na segunda edição do Festival Dois Pontos. O evento aconteceu entre os dias 13 e 29 de março último e trouxe ao Rio uma seleção de espetáculos e de artistas da Argentina em uma mostra cheia de méritos. Com imagens tocantes e belíssimo cenário de Mariana Tirantte, um dos aspectos mais relevantes da produção é o trabalho de interpretação de Analía Conceyro. A peça oferece várias leituras de temas em redor da morte sem investir decididamente por algum. A ver!
No texto de Ariel Farace, a morte é uma companheira de Constanza, agora uma velha senhora apegada aos seus muitos objetos, aos seus inúmeros hábitos, à sua imutável rotina de chá, biscoitos e de poesia. Como valores dessa dramaturgia, estão o Asno de Beckett, mas também sua poética de luta pela existência das coisas mais simples em meio ao vazio refletido na obra do escritor irlandês. Está o piquenique do sueco Ingmar Bergman e a sua lógica surrealista potencialmente capaz de considerar os sonhos como mais lógicos do que a vida dita real. É ainda possível encontrar o flerte com a morte, cujos ensaios acontecem nos sonhos que vão sendo sonhados ao longo da vida. No entanto, se “Luisa se estrella contra su casa”, outro espetáculo de Farace, parte da morte para a identificação do vazio, em “Constanza muere”, ela é o ponto de chegada, o fim, o momento que dá sentido a existência quando definitivamente já não existe. Ao longo da peça, resta, por isso, ao espectador, esperar para ver como Constanza irá morrer, pergunta essa que gera uma ansiedade a que o espetáculo se mostra incapaz de responder. Os quadros, alguns bastante belos, se sucedem. Os diálogos ilustram alguns contornos da situação e a encenação possibilita boa reflexão estética. Contudo, “Constanza muere” acaba por ser muito mais apenas a história de sua relativamente bem estruturada personagem título e bem menos uma metáfora para todos nós.
A jovem atriz Analía Conceyro apresenta um belíssimo trabalho de interpretação. Sua Constanza tem as limitações físicas de uma senhora idosa, mas isso não impede que sejam reveladas toda a jovialidade da personagem que sobreviveu aos anos. Essa é a sua maior beleza: não somos uma idade, mas várias dentro de nós mesmos. Nesse sentido, a atuação de Conceyro reúne em si características opostas que juntas são capazes de expressar um ser humano complexo e único. É brilhante! Matias Vertiz, que interpreta o Asno, tem o mérito de representar uma estrutura firme através da qual é possível identificar a fluência de Constanza. O elenco se completa com Florencia Sgandurra, que também interpreta a trilha sonora ao vivo no piano e na flauta doce.
Depois de Conceyro, o melhor de “Constanza muere” é o cenário de Mariana Tirantte. A casa onde a peça se dá tem, no lugar das paredes, valetas onde centenas de objetos se acumulam. Isso expressa o ambiente carregado em que a personagem vive, mas também o seu universo, as suas características, o seu modo de atravessar os dias. Para ir de um ambiente ao outro, Constanza precisa pular essas barreiras, o que é também boa metáfora para a construção do significado da peça. Além disso, o tapete de sala, ao invés de estar acima do piso, está abaixo dele, o que dá margem para reflexões sobre o aconchego e sobre a perigosa proteção que um lar pode oferecer a quem gosta de viver a vida. O desenho de luz, que faz ótimas participações, é assinado por Matías Sendón. O figurino meritoso de Constanza é de Gabriela Aurora Fernandez assistida por Maia Verona.
Segundo o filósofo polonês Z. Bauman, a morte é um dos momentos mais raros em que o ser humano se vê diante do desconhecido. Constanza, em português, quer dizer constância, inalteração. Morta a inalteração, podemos nos ver diante da mudança, daquilo que não conhecemos ainda. Sem dúvida, “Constanza muere”, espetáculo trazido pelo Festival Dois Pontos, pode oferecer aos mais disponíveis uma bela reflexão.
*
Ficha técnica:
Texto e Direção: Ariel Farace
Elenco: Analía Conceyro, Matias Vértiz e Florencia Sgandurra
Cenário: Mariana Tirantte
Figurino: Gabriela Aurora Fernandez
Iluminação: Matías Sendón
Operação de Luz: Sebastian Francia
Consultoria e Treinamento de dança: Susana Brussa
Assistente de Figurino: Maia Verona
Assistente de Direção: Juan Manuel Wolcoff
Como sempre, bela análise sob todos os aspectos!
ResponderExcluirObrigada Rodrigo...