terça-feira, 17 de junho de 2014

Desalinho (RJ)

Kelzy Ecard, Carolina Ferman e Gabriel Vaz em novos
bons trabalhos de interpretação
Foto: divulgação
Para iniciados

Infelizmente, em “Desalinho”, Marcia Zanelatto comete o mesmo erro que em “Deixa clarear”, assinando um texto sobre alguém célebre e sobre sua obra apenas para seus fãs. Nessa produção, também dirigida por Isaac Bernat, quem não sabe qualquer coisa sobre a poetisa Florbela Espanca provavelmente sairá do teatro sem saber exatamente a que assistiu. O texto consiste em uma bonita justaposição de vários versos octossílabos (não todos!), alguns assinados por Espanca (1894 – 1930), outros por Fernando Pessoa (1888-1935), ambos os poetas portugueses. Temos uma enfermeira (Kelzy Ecard), uma paciente (Carolina Ferman) e um terceiro personagem (Gabriel Vaz) e vemos que boa parte da narrativa se dá em um quarto de hospital psiquiátrico, mas não se sabe exatamente o que liga essas três figuras a menos que se faça uma pesquisa que auxilie o espetáculo a se contar. Com ótimas interpretações e plástica bastante bonita, “Desalinho”, que cumpriu temporada no Espaço Sesc Arena Copacabana, é um bom programa para iniciados.

Ora chamada de Mariana, e lá pelas tantas chamada de Florbela, a personagem de Carolina Ferman está com uma camisa de força no centro do palco quando a peça começa. Então, entra uma enfermeira (Kelzy Ecard) e um diálogo se dá. Antes, houve uma cena inicial com Ferman e Gabriel Vaz, correndo pelo círculo externo da plateia da arena. Sabemos que há um sentimento de amor que une os personagens dos dois atores, sabemos que ela está internada em hospital, sabemos que há uma certa admiração e cumplicidade entre a enfermeira e a paciente, mas todo o resto fica pairando sem norte na narrativa que é contada em versos, repleta de imagens e com uma métrica livre. O casal é de amantes? São os dois a mesma pessoa em duas visões? São parentes? O que a levou para o hospital? O hospital se dá antes ou depois ou durante a cena entre os dois? Considerando a história do teatro, tudo é possível quando é bem defendido e, como o texto de “Desalinho” abre diversas portas e não fecha alguma, tampouco a encenação, o espectador pode se encantar com os poemas, mas será responsável apenas pelas contribuições que der, pois a dramaturgia quase nada oferece nesse sentido. Os desafios da direção e dos intérpretes ficam imensos.

O espectador iniciado, que leu o release enviado pela assessoria de imprensa, que conhece literatura portuguesa, que se interessa por poesia sabe que Florbela Espanca viveu no início do século XX em uma zona rural de Portugal, que morreu jovem não tendo sido feliz no amor e que sua relação aparentemente incestuosa com o irmão Apeles é tema de diversas análises. Também sabe que seus sonetos ajudam a estruturar o neorromantismo e sua obra está ao lado de parte da de Fernando Pessoa, o maior poeta português do século XX. No programa entregue aos espectadores de “Desalinho”, nada disso consta e a plateia precisa, assim, dar conta do sentido da peça quase sem ajuda. Uma reflexão surrealista pode ajudar, pois, independente de por qual ponta começar, a plateia estará diante de uma peça em que os versos ecoam, as imagens se destacam, as intenções não articuladas sugerem uma posição. No entanto, saber que Mariana é o nome da esposa do pai de Florbela e que Florbela é justamente o nome da poetisa, além ler no release que o personagem de Gabriel Vaz se chama Irmão (o que seria uma referência a Apeles) são indicativos que podem atrapalhar, pois estas pistas facilmente levariam a um espetáculo biográfico pobre além de equivocado. Para chegar ao ponto central de “Desalinho”, seja ele qual for o que o espectador achar que for, será preciso desviar-se dos entraves e se concentrar nas belas interpretações.

Carolina Ferman, Gabriel Vaz e Kelzy Ecard são atores de primeira linha no teatro carioca, aqui elogiados outras vezes por trabalhos anteriores. A impressão positiva permanece. “Desalinho” aparece com beleza no modo como o elenco diz os versos, apaga as rimas, contracena e oferece emoção. Isaac Bernat, assistido por Sarah Viana, constrói com habilidade cenas cheias de sugestão, mas sem imposições, aparentemente ratificando uma boa perspectiva do difícil texto de Zanelatto. O que não é claro na dramaturgia permanece não claro intencionalmente nesta encenação.

A cenografia de Doris Rollenberg, os figurinos de Desiree Bastos, a iluminação de Aurélio de Simoni e a direção musical de Alfredo Del-Penho e de João Callado auxiliam a direção a construir um quadro muito aberto semanticamente, mas belo. As opções se mostram limpas, sóbrias, específicas, deixando a efervescência das imagens apenas para o texto.

Se antes de assistir à peça, o espectador tiver visitado a obra de Florbela Espanca e as análises sobre ela, certamente fruirá “Desalinho” com muito mais potência. Deve apenas lembrar-se, nesse caso, de que a relação entre a poetisa e seu irmão é apenas suposta e de que somente parte de sua obra justifica esse ponto de vista. E de que pegar a parte pelo todo é quase sempre empobrecer a obra e o artista.

*

Ficha Técnica
Elenco – Carolina Ferman como Mariana, Gabriel Vaz como Irmão
Atriz convidada - Kelzy Ecard como Enfermeira
Texto e idealização - Marcia Zanelatto
Direção - Isaac Bernat
Direção de arte - Doris Rollemberg
Direção musical - Alfredo Del-Penho e João Callado
Direção de movimentos – Marcelle Sampaio
Iluminação - Aurélio de Simoni
Figurino - Desirèe Bastos
Fotografia – João Julio Mello
Vídeo – Bárbara Copque
Designer – Bianca Amorim
Direção de produção – Roberto Jerônimo
Supervisão geral – Transa Arte e Conteúdo Ltda.
Realização – Espaço Sesc
Apoio institucional – CAL – Casa das Artes de Laranjeiras

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