domingo, 1 de junho de 2014

Contrações (SP)

Débora Fallabella e Yara Novaes em cena
Foto: divulgação

Essencial!

            “Contrações” é nada menos que excelente. O dramaturgo inglês Mike Bartlett tinha quase 28 anos quando escreveu essa peça em 2008. Um ano antes, o autor havia escrito um roteiro para rádio (“Love Contract”) baseado em uma pesquisa americana que revelava que 31 entre 80 empresas solicitaram, em 2006, que seus funcionários expusessem aos seus superiores se se relacionavam amorosa ou sexualmente com seus colegas de serviço. Na peça, temos uma gélida Gerente (Yara Novaes) que recebe em sua sala a vendedora Emma (Débora Falabella) para confirmar rumores de que está acontecendo uma quebra de contrato no item relações entre funcionários. A direção de Grace Passô, autora de “Amores surdos” (dirigido por Rita Clemente), aproxima o espetáculo do público não apenas por seu tema, mas por um forte apelo sensorial. Assim, antes de “pegar” pela razão, “Contrações” alcança o espectador pelos sentidos. O resultado é vibrante.
            Na maioria das montagens desse texto pelo mundo, o tom frio está expresso pelas formas exageradamente equilibradas, pelo predomínio do branco, a firmeza dos penteados e os passos em saltos altos, pelas expressões sempre ou verticais ou horizontais e pela quase ausência de diagonais. A versão brasileira, no entanto, vai muito além. No cenário de André Cortez, há uma tubulação de ar condicionado que corta o palco. Além disso, a ampla existência de janelas deixa pensar que a sala está no alto de um edifício, longe da rua e do calor. Closes de altíssima definição da pele humana atuam como papéis de parede, de forma que o espectador vê de perto a textura de uma derme de homem caucasiano. Nos figurinos, também assinados por Cortez, vemos, em ambas personagens, a combinação clássica de tailleur a la Channel cujas estampas em cores fortes expressam uma regularidade sem curvas. Tudo isso é base estética para o falar monocorde da personagem Gerente (Yara Novaes), dona do escritório onde a peça acontece. Dentro do tecnicismo, cada funcionário é avaliado conforme cumpre sua função sem desvios e consequentemente sem humanidade. O padrão caucasiano de raça humana, as relações interpessoais convertidas em números, o comportamento formal e emburrecido são esforços sociais que criam base para uma sociedade segura, conceito esse que é combatido brilhantemente por Bartlett e por Passô nesse espetáculo idealizado pelo Grupo 3 de Teatro. Onde está homem? Onde estão as diferenças que fazem ver o homem? - São questões que o espetáculo provoca.
            A montagem é expressionista no melhor uso do termo. É, afinal, a partir da Gerente, que toda a relação entre Emma (Débora Fallabella) e Estevão (o personagem aparece tanto quanto Rebecca em “Rebecca” de Daphne du Maurier) se descortina para o público. Quanto mais fria fica(m) a Gerente (e seu escritório), mais vulnerável Emma aparece diante do público. Inadvertidamente, o relacionamento entre Emma e Estevão se prolonga na história. O flerte fica mais intenso e um filho nasce. De um lado, o casal de funcionários precisa cada vez mais do emprego. De outro, a empresa reconhece neles alto poder de lucratividade, o que lhe impede de demiti-los. Positivamente, assim, o problema se mostra tão difícil de resolver quanto fortes são os heróis. Na narrativa, o ápice se alonga, sustentando a atenção do público, esse conduzido a uma revolta cada vez maior. Expressivamente, Emma vai se curvando, apodrecendo, apagando sua identidade enquanto o público se prepara para terrivelmente encontra-la tão Sem Nome quanto a Gerente desde o início é.
            Do lado de fora, as forças se opõem. Emma e Gerente conduzem os músicos que pontuam os temas de cada cena. A parede do fundo e a quarta parede serão quebradas em momentos específicos por Emma, essas tentativas terroristas de estraçalhar o orgulho, fazendo aviões atravessarem edifícios altos. O jogo de cena, cujos momentos são articulados para não fazer o ritmo cair, é incisivo, ácido e essencial.
            Débora Fallabella e Yara Novaes ganharam o Prêmio APCA por suas contribuições nesse trabalho, o que confirma a avaliação positivíssima de suas atuações. Tanto em uma interpretação como na outra, o jogo sórdido de poder que leva ao emburrecimento é apresentado em potência, com uma crítica clara e com um compromisso estético e social bastante nobre. Esse modelo de gestão nascido na revolução industrial precisa ser discutido sob pena da sociedade se desculturalizar. “Contrações” é, por tudo isso, um espetáculo essencial na programação de teatro brasileira.

*

FICHA TÉCNICA:
Texto: Mike Bartlett.
Tradução: Silvia Gomez.
Direção: Grace Passô.
Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes.
Cenário e Figurinos: André Cortez.
Luz: Alessandra Domingues.
Trilha Sonora: Morris Picciotto.
Direção de Produção: Gabriel Paiva.
Idealização: Grupo 3 de Teatro

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