Débora Fallabella e Yara Novaes em cena |
Foto: divulgação
Essencial!
“Contrações” é nada menos que
excelente. O dramaturgo inglês Mike Bartlett tinha quase 28 anos quando
escreveu essa peça em 2008. Um ano antes, o autor havia escrito um roteiro para
rádio (“Love Contract”) baseado em uma pesquisa americana que revelava que 31
entre 80 empresas solicitaram, em 2006, que seus funcionários expusessem aos
seus superiores se se relacionavam amorosa ou sexualmente com seus colegas de
serviço. Na peça, temos uma gélida Gerente (Yara Novaes) que recebe em sua sala
a vendedora Emma (Débora Falabella) para confirmar rumores de que está
acontecendo uma quebra de contrato no item relações entre funcionários. A
direção de Grace Passô, autora de “Amores surdos” (dirigido por Rita Clemente),
aproxima o espetáculo do público não apenas por seu tema, mas por um forte
apelo sensorial. Assim, antes de “pegar” pela razão, “Contrações” alcança o
espectador pelos sentidos. O resultado é vibrante.
Na maioria das montagens desse texto
pelo mundo, o tom frio está expresso pelas formas exageradamente equilibradas,
pelo predomínio do branco, a firmeza dos penteados e os passos em saltos altos,
pelas expressões sempre ou verticais ou horizontais e pela quase ausência de
diagonais. A versão brasileira, no entanto, vai muito além. No cenário de André
Cortez, há uma tubulação de ar condicionado que corta o palco. Além disso, a
ampla existência de janelas deixa pensar que a sala está no alto de um
edifício, longe da rua e do calor. Closes de altíssima definição da pele humana
atuam como papéis de parede, de forma que o espectador vê de perto a textura de
uma derme de homem caucasiano. Nos figurinos, também assinados por Cortez,
vemos, em ambas personagens, a combinação clássica de tailleur a la Channel
cujas estampas em cores fortes expressam uma regularidade sem curvas. Tudo isso
é base estética para o falar monocorde da personagem Gerente (Yara Novaes),
dona do escritório onde a peça acontece. Dentro do tecnicismo, cada funcionário
é avaliado conforme cumpre sua função sem desvios e consequentemente sem
humanidade. O padrão caucasiano de raça humana, as relações interpessoais
convertidas em números, o comportamento formal e emburrecido são esforços
sociais que criam base para uma sociedade segura, conceito esse que é combatido
brilhantemente por Bartlett e por Passô nesse espetáculo idealizado pelo Grupo
3 de Teatro. Onde está homem? Onde estão as diferenças que fazem ver o homem? - São questões que o espetáculo provoca.
A montagem é expressionista no
melhor uso do termo. É, afinal, a partir da Gerente, que toda a relação entre
Emma (Débora Fallabella) e Estevão (o personagem aparece tanto quanto Rebecca
em “Rebecca” de Daphne du Maurier) se descortina para o público. Quanto mais
fria fica(m) a Gerente (e seu escritório), mais vulnerável Emma aparece diante
do público. Inadvertidamente, o relacionamento entre Emma e Estevão se prolonga
na história. O flerte fica mais intenso e um filho nasce. De um lado, o casal
de funcionários precisa cada vez mais do emprego. De outro, a empresa reconhece
neles alto poder de lucratividade, o que lhe impede de demiti-los.
Positivamente, assim, o problema se mostra tão difícil de resolver quanto
fortes são os heróis. Na narrativa, o ápice se alonga, sustentando a atenção do
público, esse conduzido a uma revolta cada vez maior. Expressivamente, Emma vai
se curvando, apodrecendo, apagando sua identidade enquanto o público se prepara
para terrivelmente encontra-la tão Sem Nome quanto a Gerente desde o início é.
Do lado de fora, as forças se opõem.
Emma e Gerente conduzem os músicos que pontuam os temas de cada cena. A parede
do fundo e a quarta parede serão quebradas em momentos específicos por Emma, essas
tentativas terroristas de estraçalhar o orgulho, fazendo aviões atravessarem
edifícios altos. O jogo de cena, cujos momentos são articulados para não fazer
o ritmo cair, é incisivo, ácido e essencial.
Débora Fallabella e Yara Novaes
ganharam o Prêmio APCA por suas contribuições nesse trabalho, o que confirma a
avaliação positivíssima de suas atuações. Tanto em uma interpretação como na
outra, o jogo sórdido de poder que leva ao emburrecimento é apresentado em
potência, com uma crítica clara e com um compromisso estético e social bastante
nobre. Esse modelo de gestão nascido na revolução industrial precisa ser
discutido sob pena da sociedade se desculturalizar. “Contrações” é, por tudo isso,
um espetáculo essencial na programação de teatro brasileira.
*
FICHA TÉCNICA:
Texto: Mike Bartlett.
Tradução: Silvia Gomez.
Direção: Grace Passô.
Elenco: Débora Falabella e Yara de Novaes.
Cenário e Figurinos: André Cortez.
Luz: Alessandra Domingues.
Trilha Sonora: Morris Picciotto.
Direção de Produção: Gabriel Paiva.
Idealização: Grupo 3 de Teatro
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