A versão experimental de "A Gaivota"
O espetáculo “À Gaivota”, da UNIRIO, tem entre vários méritos o de estar no lugar certo: a VII Mostra Estudantil de Teatro do Ministério da Cultura e do Banco do Brasil. Diferente do Teatro Comercial, no Teatro Estudantil, vale mais o processo de construção da obra como exercício de aprendizagem para quem o faz. Aqui, dirigido por Maíra Kestenbergh, tem-se uma adaptação da obra de Anton Tchekhov (1860-1904), “A Gaivota”, escrita em 1895 e 1896. Apresentando brilhantes interpretações de Vanessa Garcia (Arkádina) e de Guggo Morales (Sorin), o resultado estético, enquanto exercício, vale como tal. O dramaturgo russo, assim como todos os dramaturgos da história universal, pode e deve ser adaptado da literatura para o teatro, mantendo o teatro vivo e a literatura conhecida. Tirar, no entanto, os textos clássicos de sua zona de conforto é, muitas vezes, um ato necessário, mas, sem dúvida, sempre para artistas corajosos. No caso de “À Gaivota”, por exemplo, a solução encontrada está longe demais do ideal. A sala de aula é, por isso, lugar perfeito para a montagem em questão.
O jovem dramaturgo, o personagem Trepliov é o elemento central da trama, o protagonista. Tchekhov escreve teatro realista psicológico, como o norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), seu contemporâneo. O texto é um fluxo de consciência, o leitor/espectador está sobre a cabeça de Trepliov, olhando de cima para baixo e vendo o interior de sua alma, vendo o mundo a partir de seus olhos, dialogando com os outros personagens a partir de suas palavras. Por isso, o dramaturgo prevê poltronas, livros, jogo de loto, tantos objetos em um cenário detalhado. Os movimentos são medidos, as intenções indicadas. Tudo está previsto para a história fluir sem entraves, para o espectador “se banhar” em catarse no universo interior do personagem. Sábia, Kestenbergh, tem a oportunidade de ouro de estar trabalhando com um elenco em exercício e experimenta o texto russo com uma “receita” diferente. O que numa temporada comercial seria um mal passo, aqui é uma ótima pedida. No palco, vemos o quanto Tchekhov estava certo em sua rigorosa descrição das cenas, pois, ao introduzir “inovações”, o ritmo cai vertiginosamente, as palavras perdem o sentido, o drama vira uma comédia e a maior parte dos personagens e das situações perdem a importância.
Na versão da UNIRIO, há diversos entraves para a fruição de “A Gaivota” (sem crase, sic). A concepção estabeleceu uma nova linguagem cênica para a encenação: tudo passa a ser um teatro na medida em que todos os atores estão sempre visíveis. Quando não em cena, o elenco fica de fronte para uma bancada individual e móvel que remete, pelo grande e longitudinal espelho, a um camarim. Na parte superior do vidro, há galhos secos e a união das bancadas deixam ver uma espécie de floresta morta, uma metáfora talvez para a decadência do campo e das relações (uma referência ao “Jardim das Cerejeiras”, outra obra de Tchekhov, talvez). Identificar o jogo dos camarins, entender que determinados atores estão e outros não estão em cena, perceber (no segundo ato) que algumas expressões são rubricas (indicações próprias do texto dramático) e outras são realmente frases do diálogo são trabalhos extras para o público que já aceitou entender que um elenco jovem está fazendo personagens muito mais velhos. O embaraço é cansativo, as cenas são modorrentas, os solilóquios intermináveis.
Os figurinos de Inessa Azevedo e de Nathalia Valadares concordam com o cenário Fabio Kohler e de Karen Macedo, estando coesos com a direção de Kestenbergh de que já se tratou. Nesse sentido, são também prejudiciais os fones de ouvido em um personagem que é para ser o administrador de uma fazenda no fim do século XIX (por que então Trepliov não usa um IMac para escrever seus textos e Trigorin um IPad para ler seus livros?), apenas para citar um detalhe dos muitos entraves que também estão presentes na concepção de figurinos. Isto é, identificar os personagens também é complicado nessa nova linguagem, que inseriu canções atuais nas falas, prejudicando ainda mais a fruição.
Leonardo Hinckel está bem no papel de Trepliov: ágil, forte, másculo, vigoroso. O único senão é que, embora o intérprete varie no volume sua potência vocal, segue discurso segue sempre no mesmo tom, o que é cansativo, porque impreciso. Quanto às demais interpretações, há bons e maus trabalhos. De um lado temos Vanessa Garcia (Arkádina), Guggo Morales (Sórin) e Guilherme Stutz (Medvedenko) com participações vibrantes, bastantes próximas de Tchekhov, isto é, próximas do real além da narrativa (eis aí o conceito primeiro de realismo). De outro, temos construções exageradas, tendendo ao cômico rasteiro, como em Ana Carolina Leite (Polina), Renato Borges (Dorn) e em Matheus Gomes da Costa (Chamraiev). Em uma terceira posição, há interpretações apáticas, com performances sem cor e discursos monocórdios, como em Alexandre Vollu (Trigorin), Fernanda Nascimento (Macha), Samara Pinheiro e Sofia Vasconcellos e Sá (Nina).
A metáfora do pássaro que morre vítima do tédio ganhou novas cores, mas permaneceu sem acontecer no espetáculo dos alunos da UNIRIO. Fica o sentimento positivo de que é na escola o lugar do exercício, do experimento, dos erros e dos acertos. Por isso, o parabéns e o aplauso a todos da equipe sem exceção.
Ficha Técnica:
Direção: Maíra Kestenbergh
Orientação de direção: Ricardo Kosovski
Assistente de direção: Andrea Santiago
2o assistente de direção: Leonardo Hinckel
Cenografia: Fabio Kohler e Karen Macedo
Assistente de cenografia: Lia Maia
Orientação de cenografia: Lidia Kosovski
Cenoténico: Alexandre Guimarães
Figurinos: Inessa Azevedo e Nathalia Valadares
Assistente de figurino: Aline Besouro
Orientação de figurino: Beth Filipecki
Direção de movimento: Carolline Helena Cantídeo / Flávia Naves
Treinamento de ViewPoints: Jarbas Albuquerque
Trilha sonora original: Pedro Curvello
Desenho de luz: JP de Andrade / Rafaela Rocha / Paula Cruz / Maíra Kesten
Orientação de iluminação: Jorginho de Carvalho
Caracterização: Paula Sholl
Orientação de caracterização: Mona Magalhães
Assessoria teórica: Andrea Santiago / Marina de Assis / Luciana Serpa
Orientação de teoria: Vanessa de Oliveira
Programação visual: Peter Boos
Produção executiva: Andrea Santiago e Maíra Kesten
Direção de produção: Maíra Kestenbergh
Elenco:
Alexandre Vollu
Ana Carolina Leite
Elis Negrão
Fernanda Nascimento
Guggo Morales
Guilherme Stutz
Leonardo Hinckel
Matheus Gomes da Costa
Renato Borges
Samara Pinheiro
Vanessa Garcia
Boa noite,
ResponderExcluiracabei de ler a sua crítica e gostava de saber se você assistiu à Gaivota agora (em Novembro) ou em Julho? Sou uma das actrizes que refere (Sofia Vasconcellos e Sá - Nina), mas apenas estive neste projecto em Julho. Como me parece que a crítica é do espectáculo de dia 29 (ou 30), queria confirmá-lo.
Obrigada pela atenção,
Sofia
A crítica foi sobre o espetáculo do CCBB, em 29/011/12. Onde a atriz que fez a Nina 2 foi outra pessoa, e não Sofia Vasconcellos e Sá, do comentário acima.
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