sexta-feira, 24 de julho de 2015

Ordinary Days (RJ)

Foto: divulgação


Hugo Bonemer, Mau Alves, Caio Loki, Julia Morganti (à esquerda)
e Vinicius Teixeira, Tecca Ferreira, Gabi Porto e Fernanda Gabriela (à direita)


Musical Off-Broadway faz primeira apresentação no Brasil em sessão especial

O musical de câmara “Ordinary Days”, do americano Adam Gwon, fez uma apresentação em versão pocket no Teatro Café Pequeno na última quarta-feira, dia 22 de julho. Dirigida por Reiner Tenente, a montagem “esquenta” a almejada produção oficial que, tão logo quanto pronta ($), estará em cartaz para o público em geral. Escrita entre 2006 e 2008, a peça fez sua primeira temporada na Off-Broadway no outono de 2009. Quatro personagens, Warren, Claire, Jason e Deb, são jovens solitários em Nova Iorque em busca dos seus sonhos. Na narrativa, há pouco, os namorados Claire e Jason resolveram morar no mesmo apartamento sem talvez estarem certos de que estão preparados para esse passo no relacionamento. A mestranda Deb está desesperada por ter perdido seu caderno com anotações para sua tese, mas ele felizmente é encontrado por Warren, um jovem ajudante de artista, e eles têm um primeiro encontro. Nessa apresentação única, cada um desses quatro personagens foi interpretado por dois atores, em algumas cenas, ao mesmo tempo. Warren ganhou vida por Caio Loki e por Vinicius Teixeira; Deb por Tecca Ferreira e por Julia Morganti, Claire por Gabi Porto e Fernanda Gabriela, e Jason foi interpretado por Mau Alves e por Hugo Bonemer, todos eles em ótimas participações. Cumprindo o previsto pelo autor no texto, toda a música dessa peça é tocada ao vivo e por um único pianista que atua quase como um quinto personagem. No Brasil, esse papel foi desempenhado brilhantemente por Marcelo Farias, sem dúvida, o maior destaque dessa montagem que surge já cheia de méritos. Aos ocasionalmente interessados em direitos autorais, principalmente (ou somente) quando o assunto for versões brasileiras de musicais estrangeiros, essa montagem de “Ordinary Days” consta no calendário de performances internacionais do site oficial de Adam Gwon. Fica-se aqui com o convite para consultar, torcer e para esperar pela montagem oficial que analiso a seguir.

“Ordinary Days” é sobre conexões, sobre a capacidade do ser humano de unir acontecimentos diferentes de sua vida e dar sentido a ela, ou sobre a habilidade em se conectar uns com os outros e com os espaços onde se vive. Adam Gwon tinha vinte e seis anos ao terminar mais um curso de dramaturgia para musicais quando decidiu trabalhar sozinho pela primeira vez em um projeto unicamente seu, começando por compor as canções e só então ver o que elas suscitariam. Na ocasião, ele estava lendo o romance “Mrs. Dalloway”, que a inglesa Virgínia Woolf lançou em 1925 e que serve, entre outras coisas, para se refletir sobre como fatos diversos da vida cotidiana se relacionam e podem (ou não) interferir na existência do ser humano. Nos personagens criados por Gwon, paira a emergência das pessoas em encontrar o sentido de sua existência. Narrada em fragmentos, as cenas desse musical são metáforas para as relações fragmentadas vividas principalmente na cidade grande. Os namorados Jason (Mau Alves e Hugo Bonemer) e Claire (Gabi Porto e Fernanda Gabriela) decidem morar juntos, mas a necessidade de lugar entre as coisas de Claire para a mudança de Jason faz o casal pensar sobre o espaço que é preciso deixar para que alguém entre em nossa vida. “I´ll be here”, uma das últimas entre as dezenove canções que fazem parte desse espetáculo, remete ao buraco deixado pelas pessoas falecidas em 11 de setembro de 2001, mas bem pode ser associada com quem não viveu aquele terrível acontecimento. Consciente da dor causada pela desconexão, Claire talvez tenha medo de se conectar novamente, mas o apaixonado Jason não sabe disso ainda e não entende porque, para a namorada, tudo parece ser tão difícil. Na outra ponta da dramaturgia, quando o otimista Warren marca com Deb para conhecê-la e devolver-lhe seu caderno de anotações que ele encontrou perdido, ela estava desesperada. Deb, cuja dissertação de mestrado é sobre Virgínia Woolf, retornou aos estudos depois de ter fracassado na vida profissional. Sem suas anotações, ela não poderia terminar o texto, o que seria um fracasso também em sua vida como estudante. No encontro marcado por Warren, Deb acha estranho tanta alegria nele, que tem sonhos, mas não tem um projeto para realizá-los. Insatisfeito como ajudante de um artista plástico, o tímido Warrren ainda acredita que é possível fazer algo relevante e que marque sua existência entre as pessoas, o que é inspirador tanto para Deb quanto para o público desse musical. Enquanto observam um quadro, no Metropolitan Museum of Art, ela lembra de que, através de um raio-X, é possível ver os percursos trilhados pelo artista antes de finalizar a tela, mas Warren pergunta: “Por que eu deveria me perguntar sobre o que não está lá?” Eis aí meios diferentes de se conectar com o mundo.

Ao organizar uma cena em que dois atores interpretam cada personagem, o diretor Reiner Tenente, assistido por André Viéri, sugere, para além do que o texto traz, um meio de cada personagem se encontrar diante de si próprio. O célebre contista gaúcho Caio Fernando Abreu, cujo falecimento completará vinte anos no próximo verão, diz que aquilo que é mais profundo na gente também está em todas as pessoas de forma que é através daí que nós nos conectamos uns com os outros. Considerando que é em suas pequenas margens que os retalhos se unem em uma grande colcha, é bonito identificar, na cena desenhada por Tenente, esses personagens tão sensíveis e em representações tão delicadas. Ainda que todos tenham apresentado boas participações, pode-se dizer com segurança que o elenco feminino teve atuação de destaque. Elogiosamente, Fernanda Gabriela, Gabi Porto, Julia Morganti e Tecca Ferreira usam os agudos por menos preciosismo e mais para evidenciar a sensibilidade de personagens que tateiam a escuridão de seus futuros na grande metrópole e nos pequenos passos do dia a dia. É bastante digno de nota o modo como Reiner Tenente, em suas últimas participações no teatro musical no Brasil, tem catalisado excelentes jovens atores-cantores.

Entre todos os aspectos positivos dessa montagem inicial de “Ordinary Days”, está em destaque o modo como Marcelo Farias interpretou as canções ao piano. Comparado a Frederick Loewe, a Stephen Sondheim e a vários outros compositores contemporâneos, Adam Gwon integra canções e vinhetas em uma música que é ouvida ao longo de toda a encenação, marcando o ritmo das falas (e dos movimentos de cena) na mesma medida em que abre caminho para conversações em meio às letras. Indicar um só pianista para atuar junto aos atores na viabilização do musical não foi apenas uma decisão da ordem da produção, mas uma opção estética do autor na criação dessa obra. A música, sozinha, também é um meio de expressão cênico-narrativa e seu intérprete é também ator nela. Marcelo Farias, com pujança, firmeza, personalidade e talento, além de preciosismo técnico, brilha em “Ordinary Days” de um modo sensível e ao mesmo tempo vigoroso. É certo de que, no futuro, hão de destacar sua atuação no cenário dos musicais no Brasil como artista de destaque, mas que ele, desde já, saiba que seu valor tem sido modestamente reconhecido aqui.

Seja em Manhattan para Adam Gwon ou no mundo para todos aqueles que, de alguma forma, produzem versões de “Ordinary Days”, esse projeto é meio pelo qual muitos jovens artistas se mostram no meio artístico e confirmam suas habilidades cênico-musicais. Idealizado por Caio Loki e realizado pelo CEFTEM (Centro de Estudos e Formação em Teatro Musical), que essa produção tenha vida longa bem como seus responsáveis uma carreira de merecido sucesso. Foi lindo!

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Ficha técnica:
Música, Roteiro e Letras: Adam Gwon
Versão Brasileira: Caio Loki
Direção: Reiner Tenente
Direção Musical e Execução: Marcelo Farias
Elenco: Caio Loki, Fernanda Gabriela, Gabi Porto, Hugo Bonemer, Julia Morganti, Mau Alves, Tecca Ferreira e Vinicius Teixeira
Cenário: Caio Loki, Mau Alves e Julia Morganti
Iluminação: Rubia Vieira
Figurino: Caio Loki
Assistente de Direção: André Viéri
Produção: Cerejeira Produções
Idealização: Loki Entretenimento
Realização: CEFTEM

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