Elenco em cena |
O ótimo casamento de Tracy Letts com Mário Bortolotto
Dirigido por Mário Bortolotto com o grupo Cemitério dos Automóveis, “Killer Joe” começou há duas semanas sua primeira temporada no Rio de Janeiro. A peça, que estreou em junho de 2014, foi escrita em 1991 pelo então iniciante Tracy Letts. Hoje em dia, esse autor americano é mundialmente conhecido por “Álbum de Família”, cuja dramaturgia lhe rendeu o Pulitzer em 2008 e cujo roteiro gerou um dos filmes mais bem cotados de 2014 com Meryl Streep e Julia Roberts concorrendo ao Oscar por ele naquele ano. Autor de clássicos da dramaturgia brasileira contemporânea, como “Medusa de Rayban”, “Nossa Vida não vale um Chevrolet”, “Homens santos e desertores”, “Uma pilha de pratos na cozinha” e como mais de quarenta outros títulos, Bortolotto seguramente é um dos dramaturgos brasileiros (bem) vivo e atuante mais importantes de nossa história recente. Gabriel Pinheiro, o único trabalho de atuação realmente destacável no elenco dessa montagem, interpreta Chris Smith, um jovem que planeja contratar um matador de aluguel para dar cabo da própria mãe para ficar com o dinheiro de seu seguro de vida. Bem ao estilo pulp, essa ótima comédia cheia de tiros, sangue, sexo e de cigarros diverte o público do Teatro Poeira, em Botafogo. Eis aqui um Mário Bortolotto raro, mas bom.
A peça estreou em 1993 em Chicago, nos Estados Unidos, se apresentando naquele ano em festivais no Reino Unido e ao redor do mundo. Quase vinte anos depois, virou filme com o título de “O matador de aluguel”, dirigido por William Friedkin, o mesmo de “O Exorcista”. Essa é a primeira versão da peça de Tracy Letts no Brasil, cujo “Bichado” (“Bugg”, no original de 1996) já havia recebido produção nacional em 2012. “Killer Joe” se passa nos anos 70, mas a versão atual acontece na década de 90, ambas no oeste dos Estados Unidos. Na história, Chris Smith (Gabriel Pinheiro) tem 22 anos e deve seis mil dólares que seriam pagos com a venda de cocaína. Seus planos deram errado quando Adele, sua mãe, encontrou a droga e a vendeu para reformar seu carro, um velho Ford. Depois de uma briga, ele foi expulso de casa, mas, antes de sair, ficou sabendo, através do padrasto Rex, que sua mãe era assinante de um seguro de vida no valor de cinquenta mil dólares. Na primeira cena, Chris invade a casa onde moram seu pai Ansel (Fernão Lacerda), sua irmã Dottie (Ana Hartamann) e sua madrasta Sharla (Aline Abovsky) para pedir dinheiro emprestado e propor um meio de receber o seguro de sua mãe. Para assassiná-la, entra em cena o matador de aluguel Joe Cooper (Carcarah), que passa a conviver com a família Smith. Criados por Letts, esses personagens têm tudo a ver com o universo da dramaturgia de Bortolotto e, talvez por isso, encontram-se em boas mãos nessa versão brasileira.
A direção de Mário Bortolotto, assistido por Gabriella Spadiari e por Valentini Durant, dá a ver a situação marginal em que esses personagens se encontram, apresentando um quadro cujos valores são opostos aos da sociedade politicamente correta, mas não menos irreais. Variando o ritmo da encenação conforme a destacar a poética do abandono nas cenas mais lentas e a valorizar a ação nos momentos de grande crise, a direção oferece aqui uma obra disposta a divertir principalmente quem consegue associar “Killer Joe” aos filmes B de Hollywood. O jeito como as cenas se articulam é capaz de evidenciar a habilidade dos personagens em engolir seus “sapos” e a obter o melhor que a pior situação lhes oferece. Trata-se de um excelente meio que parece ter Bortolotto encontrado para defender o homem em sua versão mais pobre. Infelizmente, nem todos os trabalhos de interpretação nesse espetáculo colaboram sempre para esse ideal.
Em vários momentos, Fernão Lacerda (Ansel), Ana Hartmann (Dottie) e Carcarah (Joe Cooper), apesar da distância do espetáculo em relação à sua estreia, demonstram preocupações excessivas com suas marcas interpretativas e, por isso, oferecem poucas possibilidades ao realismo em que o espetáculo está construído. Aline Abovsky (Sharla), mas principalmente Gabriel Pinheiro (Chris), em contrapartida, deixam ver nuances em aparentes imersões nos personagens, estando talvez mais entregues e menos enrijecidos, o que permite ao público acreditar neles com mais facilidade. Nas cenas de maior calma, essas naturalmente mais difíceis de viabilizar, percebe-se a disparidade dos trabalhos do elenco, ainda que a direção de Bortolotto pareça ter se esforçado na providência de maior regularidade. Observar como Pinheiro faz seu personagem reagir nas reviravoltas pelas quais seu Chris passa é uma delícia para quem gosta de bom teatro. Eis aqui um excelente trabalho!
O cenário de Mariko e de Seiji Ogama deixa bem maior o apertado trailer proposto no texto original, mas o efeito não é negativo. Menos claustrofóbico, essa ambientação dá espaço para os personagens se moverem e tempo para a plateia observá-los. Sai água da torneira, a televisão funciona e exibe programas dos anos 90, a comida existe realmente, a estante da sala está repleta de objetos meramente ilustrativos: toda a disposição auxilia no reforço do realismo de maneira que o público tem sua atenção direcionada à ação narrativa como convém ao gênero. O figurino de Letícia Madeira, no mesmo sentido, apresenta os personagens e suas realidades, apontando também para a situação em que eles se encontram. A sonoplastia assinada pelo diretor, bem como as inserções sonoras de Gabriella Spaciari e de Ninguém e os efeitos especiais de Kapel Furman, Rodrigo Telles e de Victor Akkas, reforçam o realismo com visível esmero e graça nos mínimos detalhes.
Associando o sono, a comida, a bebida e o sexo com o desenvolvimento de uma história policial bem popular, “Killer Joe” evolui de uma narrativa sombria para um quadro engraçadíssimo. Distante da trágica situação coberta de tempos mortos e de reflexões filosóficas sobre a vida do homem contemporâneo, essa peça, ainda que tenha personagens muito próximos do universo da dramaturgia de Mário Bortolotto, oferece outros sabores a quem gosta desse grande dramaturgo. Vale a pena ver!
FICHA TÉCNICA
Texto: Tracy Letts
Tradução: Maurício Arruda Mendonça
Direção: Mário Bortolotto
Assistentes de Direção: Gabriella Spaciari e Valentine Durant
Ator / Personagem:
Carcarah / Joe Cooper (Killer Joe)
Fernão Lacerda/ Ansel (pai)
Gabriel Pinheiro / Chris Smith (filho de Ansel)
Ana Hartmann/ Dottie (filha de Ansel)
Aline Abovsky / Sharla (madrasta)
Cenário: Mariko e Seiji Ogawa
Figurino: Letícia Madeira
Iluminação: Fernando Azevedo
Sonoplastia: Mário Bortolotto
Inserções Sonoras: Gabriella Spaciari e Ninguém
Operação Técnica: Gabriel Oliveira (Little Beat)
Efeitos Especiais: Kapel Furman, Rodrigo Telles e Victor Akkas
Fotos: Hudson Motta e Leekyung Kim
Programação Visual: André Kitagawa
Produção: Aline Abovsky (SP), Ana Hartmann (SP) e Ana Nero (RJ)
Produção Executiva: Carcarah
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany
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