quarta-feira, 22 de julho de 2015

Antologia do Remorso (RJ)

Foto: divulgação


Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago d`´Avila

Boa literatura e grande teatro em cartaz até o fim de agosto

O espetáculo “Antologia do Remorso” é mais um sinal de que a boa dramaturgia segue sendo escrita e de que há trabalhos elogiáveis na cena off zona sul do Rio de Janeiro. Com texto criado a partir de contos escritos por Flávia Prosdocimi, a peça dirigida por Daniel Belmonte e com Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago d’Ávila no elenco, estreou em junho deste ano no Sesc Tijuca e agora cumpre temporada que, devido ao sucesso, prosseguirá em cartaz até o fim de agosto no Teatro Gonzaguinha, próximo à Praça Onze, na zona central do Rio de Janeiro. Vale a pena ver e identificar, além dos bons trabalhos de interpretação e da forma ágil como a direção os apresenta, as proximidades e as distâncias em relação à obra de Nelson Rodrigues que talvez seja a referência mais forte dessa potente dramaturgia original.

O texto de “Antologia do Remorso” apresenta muitas similaridades com a obra de Nelson Rodrigues (1912-1980) principalmente se forem considerados para a análise os espetáculos recentes realizados a partir das crônicas desse célebre autor. Sobre os termos crônica e conto, são necessárias algumas ressalvas. Embora a divulgação do espetáculo chame o material original de Flávia Prosdocimi de contos, aos quais não tivemos acesso, deve-se dizer que eles, assim como os de Nelson Rodrigues, chegam ao espectador como se também crônicas fossem. Em termos de literatura, o cotidiano faz parte tanto do gênero crônica como do de conto, mas, no primeiro, o dia a dia é seu tema maior, enquanto, no segundo, o universo complexo do interior humano (assim como no romance) é mais marcante. Nelson Rodrigues, apenas entre 1950 e 1961, escreveu mais de duas mil crônicas em sua coluna diária do jornal carioca Última Hora. Em todas elas, as histórias individuais são apenas cores e formas com as quais o autor carioca desenhou a rotina principalmente do subúrbio da antiga capital da república brasileira. Lá está uma espécie de inventário geral dos múltiplos valores escondidos (e outros notórios) de personagens de todas as classes sociais. Nos espetáculos a partir da obra não-dramatúrgica de Nelson, geralmente o que se faz é uma curadoria a fim de que um tema justifique a justaposição das crônicas escolhidas: o fanatismo religioso, a infidelidade, o futebol, a pederastia, a política, por exemplo. No caso de “Antologia do Remorso”, dos textos escolhidos - “Crime presumido”, “A guarda”, “Silicone”, “Abortado” e “Carnaval” -, embora a questão do remorso, presente inclusive no título, dê unidade para o todo, é possível afirmar que está lá, de forma bem humorada, um roteiro de situações nas quais se revelam os valores de uma parcela representativa da nossa sociedade. Aparentemente, Flávia Prosdocimi, como uma cronista de mão firme, ritmo e criatividade, aparece agora pronta para figurar ao lado dos nossos grandes cronistas vivos, como Luis Fernando Veríssimo, Martha Medeiros, David Coimbra, Arnaldo Jabor, Fernanda Torres entre outros.

A direção de Daniel Belmonte tem três méritos principais. O primeiro é pela curadoria dos textos, escolhidos de forma a oferecer visões diferentes do mesmo tema: o remorso. O espectador há de observar que esse sentimento, em si, não é uma situação dramática, mas uma reação que nasce a partir de um fato consumado e que surge como uma surpresa negativa às crenças do protagonista sobre suas impressões da realidade. Em outras palavras, o remorso é um gosto amargo que fica depois de algo acontecido, a rebarba, a consequência, o que sobra. Partindo de lugares distantes, as cinco histórias citadas não se encontram no ápice, mas no que advém deles, o que é brilhante em termos de dramaturgia cênica. O segundo mérito da direção diz respeito à hierarquização das histórias, isto é, à sensibilidade do encenador em perceber que nem todas elas reverberam do mesmo jeito, mas, ao justapô-las, valorizando a comédia, é mais sábio deixar a mais surpreendente para o final. É o que acontece. A narrativa em quadros, tão batida, sofre os desafios da manutenção da novidade, mas esse Daniel Belmonte conseguiu superar bem o entrave, oferecendo um final que surge ao espetáculo na hora certa. Por fim, nas representações das histórias, os atores, unanimimente em bons trabalhos, aparecem trocando de personagens e garantindo a atenção do público através das carismáticas marcas da comédia farsesca e da certeza de que é preciso partir de lugares confortáveis para então direcionar a fruição para o fim. Como diretor, o jovem Daniel Belmonte é uma revelação.

Elisabeth Monteiro, Tiago d’Ávila e principalmente Gustavo Barros estão em ótimos trabalhos de interpretação. Os tipos apresentados, cujas marcas garantem o ritmo de que a crônica precisa na literatura e a farsa no teatro, surgem rapidamente, evoluindo com graça e carisma. Em uma encenação cujo cenário é unicamente composto por três cadeiras e em figurinos que não são substituídos, é bom observar a grande responsabilidade que o corpo, a voz, as feições e o movimento têm no que diz respeito à expressão. Pelo ótimo desempenho visto, os elogios são enormes. Embora discretas, as participações do cenário e do figurino de Julia Marina são pontuais e contributivas nos mais pequenos detalhes. A iluminação de Tiago e de Fernanda Mantovani aparece muito e agrega vários méritos bem como a trilha sonora do diretor, revelando bem os níveis de cor diferentes que cada quadro parece ter necessitado para se estabelecer sozinho e se relacionar com o todo.

Ainda sem ter feito uma temporada na zona sul do Rio de Janeiro, “Antologia do Remorso” nos lembra de que a cidade não é maravilhosa apenas no percurso entre o Outeiro da Glória e São Conrado. Vale a pena ir ao Teatro Gonzaguinha conhecer esse trabalho de boa literatura e grande teatro.

*

Ficha técnica:

Texto: Flávia Prosdocimi
Direção: Daniel Belmonte
Elenco: Elisabeth Monteiro, Gustavo Barros e Tiago d’Ávila
Iluminação: Tiago e Fernanda Mantovani
Cenário e Figurino: Julia Marina
Trilha Sonora: Daniel Belmonte
Direção de movimento: Milene Pimentel
Preparação Vocal: Verônica Machado
Design Gráfico: Samuel Sajo
Redes Sociais: Bruna Jardim
Fotos: Rodrigo Daboit
Visagismo: Rafa Monteiro
Operação de Som: Julianna Firme
Operação de Luz: Tiago Mantovani
Produção: Flávia Prosdocimi e Tiago Mantovani
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Realização: Amoreira Cultural, Nota Jazz Produções Artísticas e SESC

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!